Nomenclaturas Integradores: os Cultos dos Arquitectos da Memória

«(…) a pista para a compreensão do nacionalismo incide na sua fraqueza, pelo menos tanto como na sua força. O cão que não ladrou forneceu a pista vital a Sherlock Holmes. A quantidade de nacionalismos potenciais que não ladraram é muitíssimo maior do que a daqueles que o fizeram, embora tenham sido estes que chamaram toda a nossa atenção.»
Ernest Gellener



1. As poucas expedições, os poucos exploradores e viajantes que tivemos nos trabalhos etnográficos e antropológicos obedeceram, em regra, a imperativos de ordem política e económica resultantes da exploração colonial. A máscara da presença teve um cunho de justificação científica. Sabemos que existem causas profundas na origem deste atraso. Provavelmente elas encontram-se nas características peculiares da nossa história, nas condições do nosso colonialismo do tipo paternalista-parasitário. Não esquecendo os aspectos retardadores que a Igreja impôs com a suas perseguições diligentes e implacáveis, marcando de maneira indelével, a cultura e a mentalidade dos portugueses.

A apregoada falta de vocação do português para a especulação teórica, para a investigação científica é uma maneira cómoda de remediar, de se resignar ao atraso. É como estivéssemos a falar de uma fatalidade biológica.


Esta situação provém de uma longa tradição, durante os longos anos do regime ditatorial (anterior ao 25 de Abril) nunca houve dificuldade em impor programas e métodos para se fazer o silêncio ou alimentar a indiferença. A antropologia acomodou-se no ambiente cultural de então, literário e clerical, estranho às correntes renovadoras, sofrendo uma débil ou quase nenhuma influência exterior, o que não surpreende dado que os locais de produção de saber (Universidades) estavam elas também manietadas pelo poder político, com algumas excepções, pois sempre houve professores a lutarem com teimosia pela mudança.

Os tentáculos que se estenderam mais parecem o pináculo das teorias darwianas da evolução, que em meados do século XIX, apelavam para a acção cega da «selecção natural» num processo que expurgava implacavelmente as formas de vida fraca – só os mais fortes sobreviviam, sendo por definição os mais aptos. Também os darwinistas do social argumentavam que o princípio da selecção natural funcionava no seio da sociedade – os mais ricos e poderosos eram assim os mais aptos e os mais merecedores. Isto não era mais do que uma procura para a justificação moral como apoio intelectual grotesco. Ateus e clérigos, professores, estudantes, cientistas e políticos comungavam desta homilia. O entorpecimento e os seus prolongamentos fixam-se durante muito tempo, Portugal suportou uma longa fase de ditadura, com pleno domínio da ideologia conservadora e católica.

Várias foram as prelecções e os cuidados atentos na construção de uma identidade nacional
[1]. Assiste-se a uma performance teatral em que os valores da «tradição» moldaram a vontade política manifestando-se com intensidade e persistência. "Com a implantação do Estado Novo, encontramos um conjunto de etnógrafos que, até cerca dos anos 50 do século XX (e mesmo mais tarde), identificando-se com as intenções do regime, ou pelo menos não as discutindo, sugerem uma imagem de unidade nacional e de uma certa portugalidade. (…) verdadeiras encenações oficiais em concurso, acontecimentos colectivos, paradas e desfiles, com evidentes objectivos de promoção turística e, sobretudo, ideológicos. Tratou-se de embelezar, cenografar, dramatizar e apresentar em tom de espectáculo «o que o povo faz». “ (…) Neste itinerário folclorista (…) o contributo dos etnógrafos locais na objectivação da «cultura popular», que tiveram franco florescimento durante o Estado Novo, construindo, (re)inventando e restituindo imagens, apropriações e representações da cultura local" (Raposo 1998: 199-203), advogavam uma orientação firme numa misantropia de ideais sublimes. O que nós assistimos é "a uma espécie de apropriação das formas de soluções populares, com algumas pretensões erudizantes, por parte de uma elite artístico-intelectual que se propõe restituir em performance teatral uma imagem dum «texto cultural» que poderá passar a ser seu também" (Ibid.: 214). Ou seja, o projecto político de conservar as culturas como se de espécies em vias de extensão se tratasse priva-as da sua vitalidade e aos indivíduos da sua liberdade.

2. As gerações de Garrett e Herculano experimentaram a duplo título uma episódica e problemática existência, o de portugueses e de liberais. O desafio, para os românticos, era conjugar a civilização com a especificidade cultural do País, desenterrando do amontoado de histórias, tradições, costumes e falas, um rosto capaz de se olhar a si próprio e de se afirmar no palco das nações. Também " (…) a prevalência de uma imagem positiva da cultura popular acusa ainda a proximidade do novo campo de estudos [etnográficos] relativamente à herança romântica. Admitida pelos próprios etnógrafos (…) Tal como os românticos, os etnógrafos portugueses dos anos 70/80 tendem de facto a ver o povo como uma espécie de avatar doméstico do "nobre selvagem" (Leal 1995: 128 cf. Cocchiara 1981: 172).

Os ciclos de criatividade da nossa antropologia desde do último quartel de oitocentos apontam um quadro argumentativo em que a galeria de notáveis
[2] articulam os seus interesses específicos pelos «costumes populares» com a causa etnográfica, revelaram-se personalidades actuantes e adaptadas ao contexto de então, contribuindo para o quadro de pensamento da nacionalização. Serão enaltecidos pela geração vindoura, na qual os percursos etnológicos introduzidos serão diferentes. Se os primeiros tinham uma tutela romântica (viam o povo num cenário rosado), os segundos com horizontes de referência científicos externos produziam na viragem para novecentos uma diferenciação, indo directamente ao encontro do povo tendo por consequência a experimentação de novos domínios do saber. O propósito de ir em demanda à procura do povo caracteriza a urgência etnográfica de recuperar atraso na reflexão sistemática a que estava votada a nossa disciplina.

Duas gerações tomam diferentes posturas na produção de conhecimento científico. Se aos primeiros está subjacente uma antropologia de gabinete, dado que se limitavam a fontes literárias e a informantes, já os segundos, servindo-se dos mesmos instrumentos, contudo, uma postura "com aspectos mais diversificados da vida popular observada directamente, os etnógrafos da viragem do século tiveram a sua primeira experiência com aquilo que hoje designaríamos de «povo real». É do impacto desta experiência que parece nascer em parte a mudança de olhar que então ocorre: confrontados com as pessoas reais por detrás dos textos, os etnógrafos constatam a distância existente entre a sua imagem ideal do povo e a realidade desse povo" (Leal 1995: 132). Neste contacto com o «real», constatam que, afinal o povo come, fornica, defeca, produz ruídos.


Vozes da geração pioneira e ecléctica se conjugam – Adolfo Coelho e Rocha Peixoto - veiculando "uma reflexão sobre a identidade nacional dominada pelo tema da decadência nacional e uma imagem negativizada da cultura popular e do povo" (Ibid.: 138). O clima que a tarefa urgente da informação etnográfica produz, exaltam os ânimos e desalentam as paixões. Com ironia desdenhadora, o texto que Rosa Peixoto "consagrou à arquitectura popular portuguesa [em que] o interior da casa é aí visto como o espelho do país e do povo (…) [mostra desalento, e descrença.] Nos seus textos sobre a «arte popular», as constantes referências à mediocridade artística do povo português [deixa transparecer que o povo já não é] visto como guardião de tesouros sobre os quais repousa a identidade mesma do país (…) agora é visto como afectado ele próprio pela decadência da nação" (Ibid.: 140).

No âmbito das Conferências de Casino (1871) o pensamento da geração intelectual de 70, reflecte-se, em todos eles por uma preocupação em comum: a procura de uma explicação para a nacionalidade portuguesa e as causas daquilo que consideravam ser a «decadência nacional». Todos os temas tratados se repercutiam neste sentimento da decadência da civilização e da cultura que se repercutia nas obras da inteligência europeísta, sobretudo na filosofia de Nietzsche ou mesmo nos romances de Oscar Wilde. O processo histórico do Liberalismo e a crise revolucionária dos homens da Geração 70 aumentavam as vozes longínquas que outrora falavam pelos «velhos do Restelo», pelos críticos da expansão, pela voz de Camões, autor da «austera, apagada e vil tristeza».

Portugal na última década de Novecentos, como se sabe, viu-se a braços com uma crise económica e política de grandes dimensões. O Ultimatum Inglês (1890) vem ferir o brio nacional, miguando consideravelmente as expectativas de Portugal como potência colonial. Neste contexto de crise afiguram-se as dificuldades sentidas pelos intelectuais portugueses no desenvolvimento e criatividade da Antropologia.

3. No vasto rol de figuras que deram o seu contributo na antropologia, a «figura tutelar» de Leite Vasconcelos é singular. Figura activa do conteúdo cultural, atravessa um período longo da vida portuguesa desaguando na vigência do regime (1910-1926). "La colossale enterprise de J. Leite Vasconcelos resta alors la seule pouvant être qualifiée de scientifique tandis que se multiplaient les recherches d'érudits, marquées à la fois par un atomisme thématique et un particularisme micro-régional et négligeant tout comparatisme" (Durand 1991: 124). Personalidade incólume, atravessando meio século de discurso, Leite de Vasconcelos, foi, talvez, o primeiro dos etnógrafos portugueses a sair do «gabinete». Forneceu e enriqueceu a abordagem etnográfica numa grande diversidade. A ele se deve a criação do Museu Etnográfico (1893), dando um rasto inconternável às gerações vindouras, que trilharam os seus propósitos. "Leite, (…) percorreu as aldeias e as serras, desenvolveu um técnica de abordar e interrogar as populações. Estas porém, não lhe mereciam confiança. Estavam corrompidas pela vida moderna" (Ramos 1994: 582). Esta atitude conservatore encaixa-se bem nos pressupostos ideológicos do regime. A autoridade leitiana é incontestável, a sua actividade ímpar granjeia adeptos. "Consciente de la nécessité de gérer de la production symbolique d'une image nationale correspondant à ses visées idéologiques, la dictature trouvait là aussi som compte" (Durand 1991: 124).

Também essa figura expoentória da antropologia portuguesa que foi Jorge Dias, se revelou tal como os seus precedentes pela procura das origens da cultura nacional. Embora no mesmo universo teórico dos seus procedentes irá ser influenciado pela antropologia cultural americana. Várias campanhas foram realizadas nessa altura nas ex-colónias portuguesas. O regime precisava de produzir mapas etnológicos sobre as populações nativas das colónias. Mas o tipo de antropologia que se fazia permaneceu com as suas ideologias de regime. Quando os homens do regime ditatorial sentiram a "necessidade de uma informação fidedigna, honesta e inteligente, sobre uma das zonas potencialmente mais explosivas dos territórios africanos [foi J. Dias o escolhido, isto porque era um homem comprometido com o poder, embora se lhe reconheça alguma independência. A sua obra defende que a antropologia se divide em física e cultural, evidenciado alguma incompreensão da teoria sociológica.] "Os Macondes de Moçambique é uma obra pouco feliz do ponto de vista antropológico, pois se revela que Jorge Dias nunca conseguiu ultrapassar as suas limitações teóricas de base (Cabral 1991: 34).

Assistimos a muitas divergências quanto à temática abordada por Dias. “ (…) da imagem comunitária e igualitária que Jorge Dias procurava inculcar [nos seus trabalhos sobre Vilarinho das Furnas e Rio d'Onor, transparece] sob uma espessa camada apologética, muito do gosto antiliberal da época, qualquer das monografias de Jorge Dias deixava claramente entrever profundas diferenças entre os aldeãos daquelas aldeias" (Villaverde Cabral 1985: 158). De facto, a antropologia portuguesa foi marcada por uma tendência vocacionada para o estudo da tradição camponesa. Como diz Durand (1991: 124) o "Ruralisme, vision fixiste des tradictions dans un passé idéalisé, mise en avant des productions artistiques au détriment des activités économiques, effacement des antogonismes sociaux furent les caractéristiques d'une ethnographie d'Etat qui obéissait à des critéries plus politiques que scientifiques".

4. Tipicamente ausente a concorrência, a candura convencional portuguesa na sua frescura atravessa vários domínios de autêntica rapsódia, um cruzamento com outras produções do regime daria como resultado provável a confirmação dos valores e estratagemas para a produção de uma memória nacional. Basta pensar no exemplo analisado por Pais de Brito (1982: 1-2) sobre o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa: "as condições essenciais [para a eleição da aldeia mais portuguesa teria que ser aquela que] maior resistência oferecia a decomposições e influências estranhas e o estado de conservação no mais elevado grau de pureza (…)". Este utensílio de controlo social mapeou e alargou as directrizes deste Estado-Nação. Diferentes valores falam entre si, o próprio movimento folclorista e etnológico durante o período salazarista encontra-se presente na pretensão do «orgulhosamente sós».


A apregoada decadência glosada pelas sucessivas elites intelectuais e políticas levadas até à caricatura refugiava-se em acusados ressentimentos nacionalistas. Estava implícita uma exacerbada ideologia. Como diz João Leal (1995: 141): "Sendo o povo o mesmo num e noutro caso, o que muda é a maneira como os intelectuais olham para o país e se servem do povo para nomear a sua relação com ele." A este respeito, e sublinhando a importância das recolhas realizadas indispensáveis para a tarefa dos quadros teóricos e metodológicos, o nível de comportamentos contraditórios e dialécticos, não deixaram de engendrar na antropologia uma entrada activa do povo no palco da ciência com argumentos próprios.

A nossa notável aptidão para arquivar e reencontrar recordações presta-se a um imenso desempenho social
[3]. A transmissão da memória dos grupos "exige que se reunam duas coisas (recordações e corpos) (…) A performatividade não pode ser pensada sem um conceito de hábito[4], este não pode ser pensado sem um a noção de automatismos corporais." (Connerton 1999: 4-5). O efeito líquido destes automatismos corporais explorados e arquitectados permitiram técnicas do poder que criaram os rótulos da permanência, do establishment cultural.


Os arquitectos políticos presumiam, aliás sabiam-no bem, que a maioria das pessoas eram analfabetas e ignorantes. Tomando decisões, classificando o poderoso «aparelho» a vencer a inércia, em suma a cilindrar o mais débil projecto de insurreição que pudesse haver. Estas máquinas estatuais desciam até à vila ou à aldeia retendo a mecânica integracionista e o controlo permanente do sistema fascizante, num fluxo contínuo de vários interesses organizados de mascates (vendedores ambulantes) do poder.


"O Estado Novo encorajava activamente a apatia política por parte dos indivíduos e proibia a formação de grupos políticos. (…) Todos os meios de comunicação estavam sobre controle governamental e sujeitos à censura. (…) Quase se podia usar como método prático, no Portugal de Salazar, o princípio de que «aquilo que não for expressamente autorizado é provavelmente proibido». Ou, então, se determinado acto não foi proibido, provavelmente será preciso uma licença para o praticar" (Riegelhaupt 1979: 517-518).

5. "O objectivo dos antropólogos não era descobrir como os hábitos servem as necessidades (biológicas) do indivíduo, mas compreender como as estruturas sociais persistem através do tempo. (…) A «função» de uma tal instituição era formalmente definida como papel que representava na manutenção do sistema como um todo (…)" (Leach 1989: 31). Um gato não é um coelho em lugar nenhum, mas ambos exibem características comuns. O mundo «real» está rodeado de imaginário, habitado por deuses e sobre-humanos. Todas as culturas inventam artifícios retóricos da produção memória, os seus próprios mitos e as suas metáforas. O futuro é fluido e não congelado, construído pelas nossas decisões diárias inconstantes e mutáveis, cada momento influencia todos os outros. "Os seres humanos procuram desde sempre conhecer e dominar o acaso, tirando partido dele – reconhecendo padrões de ordem nas estrelas, no vôo das aves, nas entranhas dos animais ou nas linhas e nos sinais do seu próprio corpo" (Nunes 1999: 282).

O impressionante discurso nacionalista (o discurso da salvação) oferece, se quisermos, uma saga que assume feições de um trajecto iniciático. Enquanto doutrina, este discurso é feito por três etapas: no plano temporal, estabelecendo numa sequência justaposta, um passado mítico (virgem e robusto, não corrompido pela «modernidade»), um presente (de sacrifício, de luta contra o mal) e a fixidez de um futuro imutável, utópico. Em suma, a tarefa era reedificar todo o tecido social. Nesta complementaridade que se estabelece entre o passado e o futuro míticos do discurso nacionalista, a finalidade era proporcionar um quadro vastíssimo para todo o comportamento a reter, procurar captar – um não-tempo. O nacionalismo perspectiva o sentido dos comportamentos, segundo uma escatologia que reclama inventar de acordo com uma ordem finalizada, em que o conjunto de relações simbólicas deste sistema «mágico-religioso» tem como finalidade única a colectividade mítica da chamada «nação».

Os alicerces de todo o pensamento sociológico radicam neste balizar, do que está antes e do que está depois. A evocação de faustos passados está condenada a cobrir de espuma retórica o dogma místico de folclores embevecidos e nostálgicos, de falaciosas sobrevivências prenhes de crença. A fixidez, só faz sentido, para os cultos que a Igreja professa, impondo uma visão idílica, acreditando na providência, na tranquilidade, da mediocridade passiva dos quadros do regime. A existência de um povo, ordenado, passivo só existe no aparato cenográfico clerical.

O zelo pelas heresias que a religião queria controlar, curiosamente, eram fruto, elas mesmas, do aspecto utilitário de diversas culturas pagãs. A Igreja procurou desde sempre condenar a magia, não por quimérica, mas por ímpia. Entre a atitude religiosa e a mágica sempre houve antinomia. Mas o culto das relíquias, as medalhas pias e muitas das invocações à divindade constituem um traço de união entre a religião e o ocultismo. A religião absorveu práticas de diversos cultos pagãos A necessidade de encontrar um modus vivendi opera nos limites do poder, numa encenação, que implica acção, é um esforço na elaboração de representações. O poder como segredo reforça e assegura a inventividade. Garantem a comunicação nos actores sociais animados pela imaginação.

Se olharmos para o texto Tesouros: passado, presente e o risco da desordem de que nos fala Pais de Brito (1992: 337-359), a «magia» serve muitas vezes para reparar as fronteiras morais da comunidade como se vê pelos casos das «represálias mágicas» férteis nalgumas sociedades. Lobisomens e almas penadas constituem um verdadeiro sistema de punição, destinado a castigar os que em vida se comportaram como gente má e que defraudaram moralmente alguém. Juntamente com estas práticas, sociedades como as mencionadas por Pais de Brito,
[5] souberam criar mecanismos destinados a assegurar o bom funcionamento comunitário e a prevenir situações de violência. Da arbitragem de conflitos à aplicação de sanções, são múltiplas as funções. A elaboração de formas autónomas de regulação de tensões chega a desempenhar funções judiciais. Arredados, muitas as mais das vezes, de qualquer riqueza, encontra nesta virtualidade um impressionante universo de manifestações de individualidade anunciada em nome de uma predestinação por vezes obsessiva no imaginário social das suas sensibilidades. Esta situação veicula uma dupla articulação, movediça por natureza. "Nesta imbricação de representações, palavras e actos, descobrem-se nos tesouros e histórias que os envolvem projecções de ideias sobre o presente, o passado e o futuro e que no contexto aldeão, parecem constituir-se em lugar de tensão e conflito oculto que opõe os indivíduos entre si (…) institui valores e marca as condições da reprodução social" (Ibid.: 337).

Somos sempre confrontados com a articulação consciente/inconsciente por meio de um processo em que as fronteiras por muito que queiram justificá-las nos limitam o saber. O mundo da lenda não se reconcilia com os determinismos dos dados físicos em si mesmos. A caracterização da ciência é a sua impertinência e a sua curiosidade de procurar o lado escondido do jogo. "O reconhecimento da transcendência do pensamento face à sensação, aos sentimentos, às impressões, às percepções, tem uma importância fundamental. Ele permite ver que o homem só pode elaborar o seu pensamento se criar esses espantosos mediadores simbólicos que asseguram simultaneamente a troca entre os parceiros sociais e a passagem do mundo onde se sente para o mundo onde se concebe; do mundo sentido para o mundo vivido" (Hatzfeld 1993: 50).



A mudança para a diversidade


6. Nenhum avanço do pensamento seria possível se nos contentássemos com o que foi transmitido. As informações disponíveis parecem-nos insuficientes. Assim servimo-nos delas para tentar produzir outras. Através de esforços procuramos ampliar os miasmas protagonizados, sabendo que a leitura dos textos doutros autores teve particulares sonoridades tendo em conta o contexto dos momentos em que foram concebidos.

Já o dissemos, por outras palavras, dos interesses de subordinação que comportam os materiais etnográficos e na tónica posta na retoma nacionalista. Novas gerações de antropólogos protagonizaram e protagonizam, à luz da diversidade novos objectos de análise e experiências no terreno. Para além da "diversité inhérente au genre, montre le foisonnement actuel des centres d'intérête: à toute la varieté des études empiriques sur des thémes ruraux et de quelques terrains exotiquiques s'ajoutent des recherches urbaines ou sur des communautés de pêcheurs. Le domaine du symbolique et les préocupations de cognitive ou gender anthropology prennent une place importante tandis que réflexions épistémologiques ne sont pas absentes" (Durand 1991: 129)
[6]. Novos desafios têm sido propostos aos antropólogos que procuram participar de igual para igual na produção científica internacional não hesitando em confrontações que ultrapassam práticas agenciadas.

Foi neste cenário que começaram a proliferar novos campos analíticos, a ser demonstrado com êxito a impossibilidade de se separar a mente do corpo. O dualismo entre mente e corpo da ortodoxia sociológica cai por terra. A nossa mente nada é sem a nossa corpalidade, não há mentes sem corpo. O ser humano é uma identidade única, um fluxo permanente e em permanente fluir no mundo.

Os sinais de mudança foram profundos e têm se multiplicado, um deles foi sobre o estudo do pensamento masculino sobre o género, tornou-se mais diversificado e iluminou muitas e inesperadas complexidades e contradições. «As grandes mudanças que se verificaram com a sociedade moderna no campo da sexualidade e dos géneros foram igualmente mudanças na interpretação do corpo, do sexo, da reprodução, da identidade individual das emoções. Foram, sobretudo, resultado da laicização e substituição da religião pela ciência como modelo interpretativo e explicativo do mundo e da sociedade» (Almeida 1995: 73). A imergência de uma novo olhar impunha-se, todo este questionamento teve influência a nível cultural e das práticas discursivas e que transparecem na alteração de comportamentos que se vão verificando.

O homem, categoria naturalizada durante séculos, viu-se questionado na sua posição de forma nunca antes vista. O ponto de vista bíblico, que providenciou a narrativa por excelência, dentro da qual a vida dos indivíduos estava ordenada e tinha significado, começa a ser ultrapassado, atingido, abalado, ao mesmo tempo por acção de forças internas e externas. Os estudiosos da bíblia começaram a questionar a origem e composição do texto e sugeriram que, apesar da palavra de Deus ter sido transmitida directamente a Moisés, foi composta de fragmentos de diferentes proveniências. Por outro lado, descobertas de ancestrais culturas sofisticadas e letradas, desafiaram a visão bíblica da antiga sociedade e, especialmente um número de paralelos para as histórias da Génesis começaram a surgir o que fez com que a qualidade da Bíblia, como única, fosse severamente indeterminada.

Ao idealismo e ao profetismo na mistificação e descorporização do corpo, e num virtuosismo técnico, o modelo deliberadamente protagonizado em determinados contextos institucionais, revelam que "o exercício do poder sobre os indivíduos se transformou através da disciplina e da docilização dos corpos (…) (Cunha 1996: 72 cf. Foucault 1975). Há pouca sensibilidade votada no passado pelas instituições, nas ciências sociais encontramos uma (re)descoberta de temáticas, nomeadamente com o trabalho de Manuela Cunha (1996: 72-86). O seu texto Corpo Recluído – controlo e resistência numa prisão feminina, nos dá conta do prolongamento e da aplicação do modelo escolhido para o encarceramento.

O princípio do século XIX parece ter sido de facto a época dos grandes encarceramentos - o tempo em que os criminosos eram apanhados e concentrados em prisões, os doentes mentais eram apanhados e concentrados em «manicómios» e as crianças eram apanhadas e concentradas em escolas. Esta inquietante postura mudara em muitos países. Mas no caso português, maquinismos políticos e ideológicos fizeram a escolha de ajustamento aos seus ideários. A escolha do modelo de reclusamento regeu-se pela aplicabilidade da preservação da ignorância, da abusividade socio-pedagógica repressiva. Esta abusividade regeu-se por critérios incrementais de continuidades sacro-conservadoras, fomentadoras de patologias sociais. "Aquando da abertura do estabelecimento [Prisional de Tires], em meados da década de 50 do século passado, vigorava um modelo de «tratamento» penitenciário de mulheres que permaneceu alheio à deriva terapêutica registada noutros países" (Cunha 1996: 74). As novas tendências de enclausuramento, entretanto seguidas noutros países, em que as reclusas são vistas como pessoas com problemas físicos e psíquicos e consequentemente carentes de ajuda médica e psiquiátrica, não foi o escolhido, pois o seguido pelas hostes portuguesas do Estado Novo foi o que tinha como tónica principal a recuperação "moral, através da exortação religiosa, da disciplina, da austeridade monacal e da inculcação de industriosos hábitos domésticos. [Pretendiam assim controlar e reconduzir] (…) as desviantes à normalidade (…) à imagem considerada apropriada para o seu género e cujos ingredientes eram o recato, o pudor, a sobriedade" (Ibid.: 74).

No mundo exterior a fronteira entre o domínio público e o privado está bem demarcada. "Na verdade, os modos de vida na prisão – e em grande parte das instituições "totais" - vêm mostrar de forma mais enfática o elo existente entre um sentido individuado do eu e o corpo" (Ibid.: 72). Inevitavelmente podemos verificar que, mais uma vez, o poder vigente instrumentaliza a teia social, estamos a falar de uma prisão implantada nos anos 50, o que foi feito para inverter esta situação? A negatividade com a consequente desumanização e infantilização dos modos sócio-pedagógicos apresentados no texto de Manuela Cunha sobre a prisão de Tires apresenta-nos a continuidade de patologias sociais herdadas, bizarramente acarinhadas, criadoras de ambientes anti-solidários, conflituosos, e tal como o texto nos aponta, geradores de uma reabilitação social pela negativa, aliás, neste contexto, reabilitação é uma palavra sem sentido, a palavra mais correcta seria institucionalização.

A emergência do papel dos cientistas sociais impõe-se. O discurso não pode ficar pela contemplatividade do tecido social. Durand (1991: 30) aponta que este tipo de estudos influencia os investigadores na procura de discursos, sendo estes "plus mais polémiques que scientifiques". Não vejo porque razão a polémica não possa ser instalada no discurso científico. Terá o papel do antropólogo que permanecer na observação e classificação dos fenómenos? Numa sociedade que tende para a globalização, a denúncia das continuidades não justificadas, inaladoras de patologias, devem ser denunciadas e procuradas respostas para os ambientes pouco solidários que conservam moldes idealistas semeados de desfigurações. Não poderá a observação sobre fenómenos no tecido social contribuir para um discurso mais incisivo e denunciador de manifestações conservatore?

Para não fugir à temática o processo de construção da identidade é algo indissociável da elaboração de memórias. Toda a cartilha positivista se preocupava com as fontes a manipular. Miguel Vale de Almeida, no seu ensaio (ao livro da 3ª classe[7]) Leitura de Um Livro de Leitura: a sociedade contada às crianças e lembrada ao povo, nos dá conta da "montagem da aparelhagem conceptual com que a sociedade governa a reprodução – física e social. (…) este texto [que o regime político produziu] como um todo orgânico, cujos elementos componentes, os diferentes textos e ilustrações, remetem para um corpo central de significados e conjunto de mensagens veiculadas" (Almeida 1991: 247). A elaboração de marketing aqui lavrada remete-nos par um elevado grau manipulatório do regime (1926-1974), num todo coerente discurso que está em perfeita apoteose com a ideologia advogada. “ (…) o Livro de Leitura constituía um manual de regras da vida social e um esquema totalizante de uma certa visão do mundo. (…) propõe um modelo de sociedade, um modelo de comportamentos, (…) construídos peça a peça (…) Funcionando através do artificio retórico das homologias (…) que agem segundo critérios de comportamento que, em ultima instância, se encontram legitimados no divino, essa metáfora por excelência do social" (Ibid.: 260-261).

Algumas notas
As camas do nacionalismo estão sentadas a uma mesa improvisada,
Em que o rosto de um homem, irado, espreita
Através de buracos com ilhas de sentimentos
Em que já não é possível fazer conter carapaças porosas.

Fernando Rodrigues

7. Recebemos cerca de dez mil impressões sensoriais por segundo, que devem ser filtradas, se pensarmos que cada pessoa tem o seu próprio «sistema», a ingenuidade de que existe uma só realidade comum a todos é uma mera metáfora das suas facetas, da sua actividade. Há todo um elenco que inclui as próprias personalidades criadoras das obras que reflectem ou não o mundo físico-social dos seus autores.

A questão da identidade perpetuou um desvio teórico, histórico e metodológico, na obtenção e aceitação das alteridades do saber. Os exageros nacionalistas tiveram o seu epicentro como se sabe na ideologia nazi em que para sempre o problema da identidade preenche um vazio deixado. Ele está fragmentado mas não está inexistente. Se me pedirem uma definição de identidade terei dificuldade no labirinto dessa metáfora em determinar o conceito que ela produz. O seu carácter polissémico e as conotações que suscita não se ficam por dificuldades linguísticas, ela implica exacerbadas implicações ideológicas a que os antropólogos não se conseguiram subtrair.

Fascismo, Hitler, Holocausto, Dilúvio, Bíblia, Alá, são vocábulos que sistematicamente se encontram nas reflexões contemporâneas e que não vou tentar escamotear. Termos vagos que têm a força que têm e que são preenchidos pela experiência pessoal. Muitas são as notas e os acordes emocionais que a humanidade exibe no seu etnonacionalismo "Geralmente, a ideologia nacionalista sofre de uma falsa consciência generalizada. Os mitos invertem a realidade: diz defender a cultura popular, quando está, de facto, a forjar uma cultura erudita; alega proteger uma sociedade popular antiga, quando na realidade, ajuda a construir uma sociedade massificada anónima" (Gellner 1993: 183).




Bibliografia
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VILLAVERDE CABRAL, Manuel, “Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna”, in Análise Social, Vol. XXI (85), 1985-1º, pp. 157-162.


[1] Esta questão é amplamente discutida e analisada no primeiro número de Cadernos de Língua e Cultura Portuguesas, cuja temática tratada por José M. Amado Mendes (1999) intitula-se, A Identidade Portuguesa: Perspectiva Histórica.
[2] Teófilo Braga (1843-1924), Francisco Adolfo Coelho (1847-1919), Consiglieri Pedroso (1851-1910), J. Leite Vasconcelos (1858-1941), António Augusto Rocha Peixoto (1866-1909).
[3] "A memória social parece estar efectivamente sujeita à lei da oferta e da procura: há que fornecer memórias; as memórias devem surgir em pontos específicos. Mas para sobreviverem para além do imediato e, especialmente, para sobreviverem na transmissão da troca, têm que responder a uma procura. Uma tradição sobrevive numa versão ecotípica porque, para o grupo que a recorda, apenas esta versão parece adequada" (Fentress e Wickham 1992: 243).
[4] Paul Connerton destingue três tipos distintos de memória: em primeiro lugar uma memória pessoal, um segundo tipo de memórias – as memórias cognitivas. E um terceiro tipo de memória que se prende com a capacidade de reproduzir uma determinada acção – a memória-hábito.
[5] O Norte de Portugal e a Galiza, zonas onde, até aos nosso dias, os tesouros ocultos participam intensamente no imaginário dos grupos e continuam, no espaço social da aldeia (…) (Pais de Brito 1992: 337).
[7] Como refere o autor, o livro utilizado no seu ensaio é o Livro de Leitura da Terceira Classe: Ministério de Educação Nacional, Porto Editora, 1958, 4ª edição.