Posfácio ao Livro: O Passeio de Deus

Egocêntrico eu sou:
o prazer de um livro é quase sempre egocêntrico.
Implica gosto, prazer, posse. Editar, pelo contrário,
é altruísta implica gosto e também risco.

Diogo Ramada Couto


Conferindo-me o poder insanável da liberdade de espírito, a leitura sempre foi e será o meu vício predilecto, foi nela que cresci, foi ela que sempre me deu ensejo de escrever. Ler implica tempo, cumplicidade, abertura e predisposição, mas acima de tudo espírito crítico e alguma distanciação. Sinto este livro como uma linha transitória, expressionista, numa mistura doce mas furiosa, atravessando fragilidades vivenciais imbuídas de jogos sedutores onde a grandeza e a pequenez humana estão presentes nas experiências pessoais.

Esta explanação de cunho conclusivo colocada nesta obra, pretende somente, apreender essa procura da «consciência mais elevada das coisas». Surpreendendo-me pelo carácter surrealista em que nos faz atravessar por uma mescla de liberdade, potenciando a fantasia e a inteligência. Como tivesse desaparecido o “normal” (seja lá isso o que for) controlo da selectividade do pensamento – uma espécie de Louco Sagrado.

A fronteira entre o sono e a vigília parece desaparecer e o que emerge é uma espécie de sonho acordado onde proliferam fronteiras, associações e símbolos, os quais vêm enredar-se nas percepções da mente desperta. Daí, a acusação de poeta: O que virtualmente me dou conta é de que todos os pensamentos, todas as palavras, todas as emoções, todas as sensações, em suma, todos os cambiantes estão aqui carregados de roupagens sedutoras e deparadoras que tiram proveito dessas nostalgias “desinibidoras” e jocosas. Trata-se de uma sensibilidade activa, grandiosa, sublime até. Sendo que muitas das vezes estes cambiantes se tornam inquietantes, excêntricos, bizarros, únicos.

Ao lermos O Passeio de Deus, somos envolvidos nesse tirar proveito, esfomeado e sedento que acalenta a esperança que o meu anfitrião oferece no mínimo gesto da sua narrativa. A minha esperança foi alcançada da melhor maneira, com uma fausta refeição regada com deliciosos vinhos. Depois daquela entrada poética regada Da Fonte quando diz: Há quem nasça no por-aqui / para provar aos distraídos / aos confusos e aos materialmente ocupados / que a Fonte existe, / que a Fonte está em Nós. Assim, num estado de espírito caleidoscópio e multiforme, com essa magia instintiva, tão cara à antropologia, essa telepatia capaz de nos fazer participar numa comunicação sem palavras (dedução, apreensão – as não verbalizações), deparo-mo com o Poema do recomeço. A Barata. Aqui brinda-me a exclamação, o clamor… Desconheço um qualquer tratado ou ensaio / sobre a vida das baratas e é pena (!). Depois vem aquele repasto desta vez regado com uma deliciosa reserva, carnuda, macia e aveludada, este Do brilho do Tempo, tinha-me conquistado. Os efeitos soporíferos já se faziam sentir: Não há nada de novo(!), / apenas a mudança / de um ciclo para outro. / Tudo volta a ser como foi / sem nunca ser como foi. (…) Lembro a criança que fomos. / O Tempo hoje é criança / e sei que brilha intensamente / como nunca brilhou. / O que é que tu és Tempo (?!). Esta é a questão filosófica mais pertinente e que me revela não as gastas questões do Para Onde Vou? O Que Faço Aqui? Mas essa interrogação TEMPO!!!

O que é o Tempo? Sempre me dirigi a esta pergunta. O pensamento de um tempo fora da nossa existência é insuportável. Sobre esta alegação, quantas vezes me dirigi a esses espaços siderais para me furtar a complicações supérfluas afastando-me desse lugar com o nome de Terra. Percepciono essa beleza contemplativa de tudo o que tocamos, o que vemos, o que sentimos e simultaneamente, paradoxalmente, sentimo-nos acanhados neste sistema. E continuamos no infindável dos tempos à procura do grande desenhador. Quem fabrica a bússola para a navegação? No Exorcismo depressivo, encontramos o esconjurar perturbador da fera humana que somos todos nós. Todos aqueles que «inalam» este alcançar, esta vontade (por razões mágicas, religiosas, místicas, psicológicas ou antropológicas), sabem que se processa uma sobreactividade mental, tocando por vezes as raias Huxleynianas da liberação. Somos tocados por música com palavras.

Ainda no Exorcismo depressivo, leva-me a pensar que aquilo que pessoas têm em comum é mais forte do que aquilo que as separa: Não te esqueças / que serás sempre / a minha semântica para tudo. Estamos diante da ampola da produção poética. Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como ele é, infinito. Só que o laço que une o significante ao significado é arbitrário. O palácio do êxtase apercebe-se da insuficiência perante a pluralidade do mundo que toca as raias do agnosticismo. Porém, o pensamento emancipa-se, a maturidade intelectual pergunta-se se é ateu, panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre-pensador. Desconfia-se estar perto da gnose no sentido antropológico do termo. Existência-Consciência-Beatitude não são puras insinuações, encontramos uma ardente peculiaridade com a mente que elabora, se preocupa, mais do que com os lugares, a existência e o significado protegendo-se de ser esmagado pelo nome “este mundo” sabendo-se vítima do saber reduzido que temos do universo conhecido. Basta lembrar, outra vez no Exorcismo depressivo quando diz: Espera-me nas estrelas / e perdoa o Tempo. Afinal só nos resta Impaciência. É preciso comer a cor-azul do céu / e fazer a digestão / durante a Eternidade.

São os pequenos nadas que fazem a diferença. Em Todo, lá fora e aqui dentro, o ser humano é capaz de luxos biológicos. Não só o cardápio como a própria refeição sugere a elegância de dar conta que cada forma de cultura é a marca do homem, é igualmente respeitável e “sagrada” seja em que lugar for: Ganhar será o Todo / pois nunca se ganha. / O contrário não existe, / apenas a relação. Estamos perante uma postura antropológica. Todavia, não há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua o seu conteúdo ético. Tal como nas artes plásticas, quem propõe é o assunto, mas quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista. Em Terapia poética realiza-se a essência física da poesia bela e valiosa: O poema deverá / ter sempre / o efeito de um narcótico.

Projectando as suas imperfeições e obsessões, com todas as preciosidades e paixões que o homem vai usufruindo nos jardins plantados sociais, por muito arrebate ou santuário inaudito que uma sociedade nos ofereça verifica-se essa dor absurda de nunca atingir em pleno a principesca felicidade. Da Morte, encontramos uma componente visionária aterradora que se vendia como perfeita, plena, sem conflitos. Morte, sexo, dinheiro e religião são questões essenciais que preocupam o ser humano in lo tempore.

As palavras evocativas empregadas pelos poetas têm por vezes essa magia de produzir imagens na minha mente, numa proporção hipnótica de vida independente. Numa ambivalência entre a magia da proximidade e o encantamento da distância, numa ironia zombatória das pretensões humanas de estabelecer normas para tudo, mesmo para a conduta dos processos cósmicos Da Filosofia ou a grande-arte da “masturbação” é-nos fácil apontar a sublime tautologia: sou o que sou. Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros.

Cada espírito em sua prisão corpórea vai acumulando informações, experiências desses universos pessoais de génios e demónios, cada qual com o seu continente temático cheio de dramas, parábolas, profecias e outros xamanismos, julgando sempre atingirem o palácio da sabedoria. Neste cenário e perante tanta pluralidade, apercebendo-se da insuficiência e da ausência de respostas eis que surge a exclamação: Mas que grandes-aprendizes de Infelicidade! Está a dizer-nos: chega! O tempo deve parar. Encontro-me numa eternidade insaciável de uma eterna e omnipresente ausência e no entanto numa existência abruptamente presente. Aqui, o prazer, é a tarefa imediata a satisfazer os sentidos, permanecendo notavelmente estáveis, independentemente de suas idiossincrasias psicológicas.

Numa exaltação irónica mas genuína percorre-se quilómetros de literatura desde o pensador francês, Foulcaut com As palavras e as coisas,[1] de 1966, sucesso de vendas que tornou Foucault conhecido no mundo inteiro e alvo de ferrenhas críticas. Acusado de assassinar a história, Foucault respondeu em tom irónico: "não se assassina a história, mas assassinar a história dos filósofos, esta sim eu quero assassinar". Notamos aqui um efeito de repulsa por este assumo. Mas o efeito de cavalo de corrida aponta-nos a próxima emoção de velocidade: Ricouer[2], foi um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. A dialéctica entre explicar e compreender, para Ricoeur, não constituem os pólos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo complexo: a interpretação. O ponto crucial e daí: Andava sempre em conflito com as Interpretações. Temos os Teóricos de Frankfurt[3], Marcuse, Adorno, Horkheimer, Benjamin e Habermas.

É, como diz o autor: Estou cansado disto. / Por agora vou alinhar com o Marcuse. / Ele e eu aconselhamos: / sejam livres! Eu também alinho com Marcuse ou não fosse a sua notável influência nas insurreições anti-bélicas e nas revoltas estudantis de 1968 e 1969. Não posso deixar de tecer mais umas palvras acerca desse legítimo pensador alemão que foi Herbert Marcuse[4]. Como pensador, Marcuse é, acima de tudo, hegeliano, ou seja, radicalmente dialéctico e crítico. Em Freud, Marcuse encontra a possibilidade do homem ser feliz, isto é, para Marcuse, o princípio da realidade resulta de condições históricas específicas. Ou seja, a infelicidade é um fenómeno inseparável de determinadas situações sociais. Assim sendo, quando atingirmos a situação social correcta, o homem poderia ser feliz. Quando será? No “Império da Razão”. Em Eros e Civilização Marcuse nos mostrará que o homem guarda lembranças profundas de uma possibilidade da felicidade, lembrança presente nos mitos de Orfeu e Narciso.

Agora num prisma peculiar temos como que uma mediação entre o humano e o divino. Impelido por uma intensificação de ditosa participação no limiar da consciência, somos levados, provocados, estranhamente transfigurados a uma gradual-mente presença de sensações sucessivas. Ditosas paixões, radiantes imagens de luz, memórias eróticas da alma.


Como um lá fora e aqui dentro harmonioso, urgente, infinitamente tranquilizador. Mas também ávido. Também eu no Aprendiz de Alquimia e numa súbita e transcorrida eternidade dou-me conta do contingente, do condicional e num eclipse monumental: Diz-me, meu glorioso mestre, do grande-SEGREDO. Sou o teu curioso e desnorteado aprendiz de Alquimia (Aforismo 30). Fico estarrecido e aquela opacidade perturba-me, porém, no meio deste júbilo de haver recuperado a lembrança das coisas, esse conhecimento de uma identidade capaz de memorar essa consciência da minha existência, fico perplexo.

O PASSEIO DE DEUS insere-se numa contemplação estética que me transporta para uma passagem de um dos livros de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos em que diz: «a contemplação proporciona ao homem o único favor que ele sabe merecer (…) durante os breves intervalos em que o nosso espírito consente em interromper o nosso labor de cortiço, em apreender a essência do que foi e continua a ser, para aquém do pensamento e para além da sociedade: na contemplação dum mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume, mais sábio que os nossos livros, respirando na corola dum lírio; ou no piscar de olhos carregados de paciência, de serenidade e de perdão recíproco que um entendimento involuntário permite às vezes trocar com um gato». Poeta e visionário, Ângelo Rodrigues, reintegra essa procura, essa demanda que desbanaliza a vida experimentando um fogoso procurar poético do aforismo, apóstolo e provocador do estabelecido a fim de por a descoberto o espírito do tempo.

[1] A obra de Michel Foucault até hoje incomoda os ortodoxos da cultura, principalmente os de história e linguagem. Pensador de visão ampla e serena conferiu em suas observações sobre o homem, a sociedade e a ciência, caminhos que desconstruíram paradigmas individuais e colectivos na academia ocidental. Foucault em suas perspectivas pós-estruturalistas construiu, ou melhor, desconstruiu um legado de certezas e verdades presentes na academia a qual teve na religião e na ciência positivista o seu porto de ancoragem.
[2] Paul Ricouer fez uma importante obra de filosofia política. Ricoeur participou em debates sobre a Linguística, a Psicanálise, o Estruturalismo e a Hermenêutica, com um interesse particular pelos textos sagrados do Cristianismo. Cristão e antitotalitarista, notabilizou-se pela oposição à guerra da Argélia (1954-1962) e à da Bósnia, em 1992.
[3] Este grupo emergiu no Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt da Universidade de Frankfurt-am-Main na Alemanha. Propõem a teoria como lugar da autocrítica do esclarecimento e de visualização das acções de dominação social, visando não permitir a reprodução constante desta dominação. Com a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, os membros do Instituto, na sua maioria judeus, migraram para Genebra, depois Paris e finalmente, para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque. A primeira obra colectiva dos frankfurtianos é os Estudos sobre Autoridade e Família, escritos em Paris, onde estes fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das sociedades burguesas contemporâneas. Nestes estudos, os filósofos põem em questão a capacidade das classes trabalhadoras em levar a cabo transformações sociais importantes. Esta desconfiança, que os afasta progressivamente do marxismo "operário". Mais tarde, com Marcuse inicia-se uma frente de trabalho que associa a Teoria Crítica da Sociedade à Psicanálise. Marcuse, que permanece nos EUA após o retorno do Instituto para a Alemanha em 1948, leva a que Adorno continue o trabalho iniciado na Dialéctica do Esclarecimento, de reformulação dialéctica da razão ocidental, em sua Dialéctica Negativa, sendo considerado ainda hoje, o mais importante dos filósofos da Escola. Com a sua morte, começa o que alguns chamam de segundo período da Escola de Frankfurt, tendo como principal prenunciador, o antes assistente de Adorno e depois, seu crítico mais ferrenho, Habermas.
[4] Marcuse foi o mais significativo dos frankfurtianos, do ponto de vista das repercussões práticas de seu trabalho teórico, já que teve influência notável nas insurreições anti-bélicas e nas revoltas estudantis de 1968 e 1969.

Fernando Baleiras
Agosto de 2007

Gorreana: O Sacerdócio do Chá

Índice
- Preâmbulo
- A Diáspora do Chá
- O Fio Histórico do Aparecimento do Chá em São Miguel
- Em Gorreana
- As Vicissitudes que o Chá Tem Passado
- A Crença nas Propriedades Curativas
- Bibliografia



- Preâmbulo
Oferecendo um clima ameno [1], a ilha de S. Miguel [2], a chamada Ilha Verde, com base na cor que lhe confere contempla-nos com uma exuberante flora. Neste vasto conjunto de plantas destaca-se a cultura de chá. A fertilidade do solo e a posição geográfica contribuem para o cultivo desta planta. No vasto maciço florestal encontramos a única produção de chá da Europa com este nome – Gorreana.
Quantos de nós, continentais, ouvimos falar em Gorreana? A palavra mágica do chá açoriano, secular, com a divisa de vulto de ser único, plantado, nascido e embalado na Europa. A produção do único chá europeu com este nome está intimamente ligada a uma família açoriana, nela se contam os tempos que vêem desde a matriarca Hermelinda Gago da Câmara, que fundou o Chá Gorreana, até aos dias de hoje em que são seus proprietários Margarida Hintze e o seu marido Hermano Ataíde Mota.

Em diversas partes da ilha de São Miguel interroguei alguns habitantes sobre o que me podiam falar sobre chá, todos eles me apontaram o “quartel-general” do chá. Aliciavam-me para uma visita, e que uma delas já tinha feito, ao museu perto da aldeia da Maia, a meio caminho entre a Ribeira Grande e as Furnas. No amplo edifício térreo, deparamo-nos de imediato em letras garrafais com o nome CHÁ GORREANA. De museu, esta fábrica não tem nada. Assim que entramos deparamo-nos com a presença de maquinaria de tratamento de chá que nos põe confusos, porque ficamos com a sensação de estarmos em presença de peças museológicas, mas assim não é. Embora estas máquinas tenham muitos anos, sendo basicamente oriundas da tecnologia dos anos 30, estão em perfeitas condições para executar as suas tarefas. Sem as sofisticações tecnológicas actuais, deparámo-nos com um artesanato perfeitamente assumido. Quanto à embalagem do chá, verificamos o mesmo ritmo artesanal. Quatro mulheres de mãos hábeis passam a “pente fino” – à mão – as folhas antes de entrarem nas respectivas embalagens. Com o mesmo ritmo preenchem os conteúdos dos sacos de cor garridos: são três as cores das embalagens, o vermelho destina-se ao Orange Pekoe, o verde para o Hysson e o azul para o Pekoe.

“Sob a orientação de chineses mandados vir de propósito, esta fábrica foi fundada por Hermelinda Gago da Câmara e seu filho Eng.º José Honorato Gago da Câmara, entre 1880 e 1882. Mais tarde, de 1920 a 1924, o Comendador Jaime Hintzel ampliou-a, montando novas máquinas, sem esquecer o desenvolvimento das plantações com vários tipos de chá”.[3]

Esta fábrica já conheceu cinco gerações, sempre com a mesma família, sendo que a sexta geração faz tenções de assim continuar. Dizer que se trata de uma empresa única, produtora de chá na Europa não basta, o chá Gorreana é uma instituição secular, se assim se pode dizer, em todos os sentidos. Detentora de um local e de um produto de produção única, com orgulho abrem «as portas» ao lugar de “culto”.

Com as pessoas de Gorreana usufrui momentos de esplêndida “cavaqueira”. Não me furtarei a mencionar aqui o nome da pessoa que foi a minha principal interlocutora porque a isso me incentivou, Hermano Mota, excelente cicerone de uma simpatia sem precedentes, gestor e representante da família do complexo Gorreana. Grande conhecedor da matéria, Hermano Mota tem um discurso fluente e espirituoso, entrecortado na nossa conversa, vai dizendo poeticamente que uma das particularidades do chá é dar mais leveza à água, ou ainda, que o chá dá mais companhia para a conversa do que o café (sic). Aproveito também para agradecer a gentileza com que fui acolhido pelo Sr. João Manuel, empregado de Gorreana, que me guiou no percurso de concepção do chá, desde a sua apanha, passando pelo processo maquinal, até à concepção final. Quero agradecer ainda à Dra. Lina Baptista, em estágio na sua licenciatura em História, na biblioteca da Ribeira Grande, que foi muito generosa com o seu tempo, com a pesquisa bibliográfica e com a sua amabilidade – foi um imenso prazer.

- A Diáspora do Chá
Planta de cultivo com cerca de quatro mil anos, o chá (a bebida) terá sido descoberta por um imperador chinês. Mas a sua origem contínua envolta num colorido manto de lendas chinesas, japonesas e indianas, já a sua divulgação a Ocidente pertence aos navegadores portugueses.

A história oriental dos portugueses levou-os a experimentar o chá como bebida e como culto, e a divulgá-lo no ocidente, através da sua porta comercial na Ásia – Macau – e a introduzir na língua portuguesa expressões relacionadas com o chá. A palavra portuguesa «chá», proveniente da palavra cantonense «cha», integrou-se no vocabulário comum da língua através de Macau, pois era Macau, no século XVII, o grande entreposto de comércio do chá proveniente da China. Os primeiros grandes comerciantes de chá com a Europa foram os holandeses, que em 1607 fizeram a primeira encomenda de chá aos portugueses de Macau.

Diz-nos Augusto Gomes (1987: 248), “ (…) que o primeiro chá consumido no nosso país não o terá sido como bebida alimentar, mas sim como medicamento, não só pelo facto dos cronistas da época raramente o mencionarem nos lotes de especiarias, como ainda pela definição que nos dá o «Esboço de hum Dicionário Jurídico, Theorético e Práctico, Remissivo às leis compiladas, e extravagantes, por José Caetano Pereira e Sousa, advogado na Casa da Suplicação», obra póstuma publicada em 1825, «arbusto do Japão cujas folhas são mais longas adentadas, das quais se extrahe a tintura que se bebe …». Ora, sabendo-se que o vocábulo tintura significa, para além da sua acção ou efeito de tingir, os preparados farmacêuticos obtidos pela dissolução do álcool ou éter dos princípios solúveis contidos nas drogas secas, parece ficar assim confirmada tal teoria. (…) a opinião do sábios naturalistas alemães Link e Hoffmamsegg, aquando da sua passagem por Portugal, indicando o Norte do país como terreno ideal para o cultivo do chá na Europa, não foram suficientes para entusiasmarem os portugueses, que, pelo contrário, a desprezaram como mercadoria de futuro numa Europa ávida e ansiosa por absorver o exotismo asiático. Contudo, o hábito de tomar chá inflitrar-se-ia em terras lusas, passando-se a servi-lo em chás-dançantes, e de caridade, designando-se também as refeições leves, intercaladas ao almoço e jantar, constando de torradas, biscoitos e bolachas, de chás”.

Em Portugal continental, em meados do século XIX, houve várias tentativas de introduzir a cultura do chá, cujos vestígios ainda podem ser encontrados nalguns recantos do país, designadamente em Sintra, onde existe um lugar chamado Alto do Chá, no Parque da Pena. Conta Montalto de Jesus (1990: 280), a propósito do cultivo de chá em Sintra, introduzido por D. Fernando II nas suas propriedades, em 1882, que “ (…) a condessa Edla tinha um jardim de chá no palácio real de Sintra, sendo o seu «chá das cinco» abastecido com excelente chá de Macau, devidamente tratado por peritos chineses expressamente enviados para essa finalidade”.

- O Fio Histórico do Aparecimento do Chá em São Miguel
As primeiras notícias da existência da planta do chá neste Arquipélago remontam aos fins do séc. XVIII, embora seja admitido que já nos séculos XVI e XVII, esta planta já fosse conhecida nos Açores, uma vez que as naus portuguesas, nessa época, nas viagens de retorno do Oriente aqui faziam escala. Segundo Carreira da Costa (1978: 219-220) “o fio histórico do aparecimento do chá nas ilhas data do início da segunda metade do século XIX, (…) que começou a praticar-se nos Açores e especialmente em S. Miguel, a cultura do chá com o fim industrial, embora a tradição nos diga que já nos fins do século XVIII existisse nos Açores a curiosa planta”.

Em Novembro de 1799, era então regente de Portugal D. João (futuro D. João VI), é pedido ao Governador-geral dos Açores, também conde de Almada, para que fosse enviado para o Reino algumas plantas de chá, que já nesse tempo cresciam na ilha Terceira. Foi já em 1801 que o Conde de Almada, Governador-geral dos Açores, envia para o continente dois caixotes com o chá que abundava na ilha e que não era convenientemente aproveitado.

Por outro lado, chega-nos a notícia de que a primeira cultura de “chá teria começado em S. Miguel com a vinda por volta de 1820 de algumas sementes trazidas do Brasil pelo micaelense Jacinto Leite que as utilizou numa propriedade sua, das calhetas” (Costa 1978: 220). Há também a informação de que fora um micaelense, cujo nome se ignora, que enviara estas sementes para S. Miguel, mas a versão aceite pelos meus informantes é a primeira, uma vez que Jacinto Leite desempenhava no Rio de Janeiro, as funções de comandante da guarda-real, na corte de D. João VI.

Com o declínio da produção e da exportação da laranja, cujo apogeu decorrera por volta de 1870, começaram os micaelenses por intermédio da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense a pensar no desenvolvimento da cultura de chá, bem como na sua preparação e por consequência na sua exploração industrial. Em 1874, era votada pela Sociedade uma maior verba para esse efeito à qual adicionariam subsídios especiais do Governo Central e da Junta Geral de Distrito de Ponta Delgada. Todavia, é só em 13 de Novembro de 1877 que a S.P.A.M. consegue contratar dois chineses para virem aos Açores ensaiar a fabricação de chá – para testar se seria viável ou não a instalação de fábricas de chá na ilha.

Com a intervenção de Eugénio Correia e Silva, na época governador de Macau, dois chineses são enviados a Lisboa a bordo do paquete “África”. Já em Lisboa viajam para os Açores no vapor “Luso” e a 5 de Março de 1878, desembarcam em S. Miguel. Na qualidade de mestre e manipulador, Lau-a-Pan e o seu ajudante e intérprete Lau-a-Tang iniciam as experiências logo após dez dias da sua chegada à ilha, começando por visitarem algumas plantações nas Capelas, Pico da Pedra e Ribeira Grande. Foi me dito ainda, que estes dois chineses não ocultaram a sua admiração pelo desenvolvimento e robustez que o chá obtinha em terras micaelenses. Ao colherem as primeiras folhas logo se prepararam para fazer a primeira demonstração da sua manipulação e assim se avaliar as suas qualidades[4].

No ano seguinte, foram dados os passos para a indústria de chá na ilha de S. Miguel. “Por intervenção de M. F. Fouqué, foi analysada em Paris uma amostra de chá preto, enviada em 1879; o resultado da analyse feita por M. Schutzenberger, Professor do Collegio de França, é o soguinte:
Cellulose . . .
Resina . . .                                         Insolúveis            64,3
Albumina . . .
Matéria gordurosa . . .


Theína ou cafeína . . . 4,2
Tannino . . . 1,1                                 Soluveis             35,8
Matéria gommosa . . . 30,5
                                                                                                  _____
                                                                                                  100,1

São os dois chimicos de opinião que a analyse revela qualidades de um excelente chá, como igualmente o prova a infusão. A maior parte do chá do commercio não contem mais de 2 a 3 por cento de theina, que é o princípio activo característico”.[5]

- Em Gorreana
Gorreana, propriedade de 43 hectares é uma sobrevivente. Desde o final do século passado o chá teve uma produção importante nos Açores, conseguindo “ (…) ocupar consideráveis áreas sobretudo nas zonas norte de S. Miguel, chegando a existir 14 fábricas, devidamente licenciadas” (Costa 1978: 220). Presentemente Gorreana é a única exploração a funcionar em São Miguel, embora já haja em Porto Formoso uma pequena exploração em experiência, mas numa vertente mais turística, com a quinta a preparar-se para alojar e receber forasteiros.

Nome que suscita curiosidade, Gorreana, Hermano Mota explica a sua origem: Na altura em que tivemos que dar um nome à casa lembramo-nos de uma senhora marcante que vendia diversos produtos num cruzamento de caminhos - aqui ao pé de nós. Chamava-se Ana e andava sempre de gorro na cabeça (sic).

Desastrosamente ignorado por uns e carinhosamente apreciado por outros, os conhecedores desta bebida reivindicam-lhe uma ancestralidade floral envolta em poesias. Veterano destas coisas do chá e com gosto pelas suas proezas, nada melhor do que acompanhar o discurso no meio de uma vaguíssima sensação de abandono, de lassidão, de isolamento a que o lugar, necessariamente obrigava, em que os odores atravessavam o meu olfacto pouco hábil a conviver com aromas que se desprendiam de todas as direcções, o «senhor Gorreana» na sua madurez requintada e micaelense, mas também com bonomia, convoca-nos a uma cerimónia religiosa a que só os verdadeiros amigos devem ser convocados.

Casado com Margarida Hintze desde 1966, filha única e herdeira da propriedade e da fábrica, Hermano Mota, dedicou toda a sua vida a preservar uma tradição familiar que vinha já dos finais do século passado. O chá não lhe era um produto desconhecido, uma vez que a sua família de origem deteve até aos anos 50 uma das mais importantes fábricas de chá na ilha, o Chá Mafoma. Os conhecimentos adquiridos junto da família e a sua formação técnica na Escola Agrícola de Santarém granjearam-lhe conhecimentos suficientes para se iniciar nos segredos da sua manipulação.

Segredo de manipulação? Pode ser! Quando o chá era enrolado à mão era complicado ter um chá com uma determinada característica, até porque nem todos tinham a mesma sensibilidade de odores. É desagradável pensarmos esta questão: a transpiração das mãos, dos enroladores de chá, principalmente nos meses mais quentes (Junho, Julho, Agosto) era inevitável, embora pareça um pormenor de somenos importância acaba por ter um peso no produto final. Nessa época as pessoas não eram muito afectas às técnicas, aos termómetros, aos parâmetros de temperatura, de humidade ao arejar ou não arejar as plantas nos momentos propícios, em suma, a compactação do chá (sic). Nessa altura o chá obrigatoriamente fermentava, porque senão as enzimas azedavam o chá. Ora, aquele que conseguisse os parâmetros mínimos para a sua concepção fazia segredo do seu domínio, da sua “alquimia”. Qualquer livro minimamente técnico tem aproximações à sua manipulação, temperaturas, graus de humidade, etc. Depois cada um dentro dessas indicações dá o seu contributo… mas o solo tem um papel determinante, a acidez do solo, a constituição do solo é a “chave”, no qual não se pode fugir, sobretudo na área do taninos[6] (sic).

Sendo a planta mais ou menos oxidada, obrigatoriamente que influencia o chá no aspecto do paladar, na infusão mais ou menos transparente, mas também aqui cada produtor insere os seus, parâmetros, a sua “arte”. Em Gorreana a preferência vai para o chá de infusão transparente, daí fazerem uma oxidação longa, uma vez que as fermentações são quase nulas. Diz-nos Hermano Mota, que nesta área “navegaram” durante muito tempo, foi preciso estudar a folha de Gorreana, que tem as suas próprias características. Comparando o seu teor com a folha do Quénia, nós estamos cá em baixo e eles lá no fim da tabela (sic). Portanto, hoje não há uma grande preocupação no guardar do segredo, o clima, o tipo de folha que o solo produz, o grau de humidade, esses é que são os segredos.

O que tem de especial o solo açoriano para esta cultura? Acontece que na ilha não existe o contratempo da geada, as nossas plantas crescem num local onde a acidez do solo predomina, ou seja, para esta cultura a geada seria o inimigo enquanto o solo ácido é um dado primordial para a sua boa cultura. Mais, diz-nos Hermano Mota, as plantações necessitam de 30 milímetros de água por mês, o que para nós não é nenhum mistério (sic).

Com o peso de quem dirige a única empresa de chá da Europa, Hermano Mota impulsiona o discurso para a “magia da natureza”. A raiz da planta açoriana é pouco profunda, vai no máximo até a um metro de profundidade, por exemplo, na Índia há raízes que podem atingir 12 metros de profundidade. Penso que talvez seja daí a razão pela qual os ingleses, quando se referem ao chá, falem de raízes profundas (sic). Esta questão das raízes tem essencialmente a ver com a chuva. Por exemplo, numa zona onde chova durante três meses e que de imediato surja um longo período de seca, a planta para se defender cava uma raiz mais profunda, precisamente para procurar água.

Foi “ (…) devido à semelhança de temperatura e do grau higrométrico entre a China e os Açores, [que] não foi difícil a estes o êxito da sua cultura. (…) O terreno utiliza-se, de preferência, o da adubação vegetal azotada (fins de Março). Também a maneira como é feita a poda terá influência na boa ou má folhagem” (Oliveira 1967: 226).

A colheita da camellia sinensis faz-se entre o mês de Abril e Setembro. Os dias preferidos para a apanha são os dias secos e claros, por vezes a apanha faz-se em dias de chuva, mas é mau, a chuva é uma faca de dois gumes, sem ela a planta não cresce, a folha não ganha a seiva suficiente; com ela não é possível ir para o campo com a máquina para a sua apanha. As folhas molhadas necessitam de mais temperatura para lhes retirar a humidade. Todavia, apesar dos contratempos, diz Hermano Mota, quando chove aparecem mais turistas, as agências de turismo aproveitam a alternativa de fazer a visita de praxe à fábrica de chá.

Nos locais mais baixos da plantação a apanha faz-se 5/6 vezes por ano, durante a altura da poda[7], nas partes mais altas fica-se pelas 3/4 vezes, dependendo da temperatura que as plantas apanharam. À medida que a máquina vai cortando as folhas, dois rapazes atrás, vão puxando e ajeitando as folhas para dentro de um saco. Um terceiro rapaz, de reserva, vai acatando algumas folhas que possam ficar retidas na planta. Se a planta está boa, se é uma altura boa, a máquina apanha em média cerca de 2000 quilos de folhas, traduzindo-se depois em 500 quilos de folhas secas. As plantas são sempre as mesmas que, consecutivamente se renovam.

A adubação do terreno é feita com cerca com 250 quilos de adubo por hectare, no mês de Setembro, altura em que o extremo da folha já não produz mais. Entre Outubro e Fevereiro faz-se os cortes das plantas para as limpar. Desta poda, de tudo o que cai da folha serve para adubar, e este é que é o adubo utilizado em Gorreana – não são utilizados químicos ou herbicidas. Assim que começa a vir a Primavera, as plantas têm que estar preparadas para depois rebentarem, há anos em que começa mais cedo a apanha das folhas, como aconteceu por exemplo este ano, foi um ano bom para o chá, antes de Abril já aconteceu uma apanha e acabamos de fazer a segunda (sic).

Depois da apanha, a planta é trazida para a «oficina» e colocada em tabuleiros de rede que lhe facilitam a perca de humidade. Logo que as folhas ficam murchas são levadas para a máquina para serem enroladas, onde simultaneamente a própria máquina separa as folhas grandes das pequenas, ou seja, faz o equilíbrio das folhas. Da máquina faz parte uma passadeira rolante em que ao fundo desta estão algumas mulheres, duas ou três, que vão tirando alguns talos que as redes não filtraram. Tendo uma rede com várias malhas, em cada orifício dessa rede vai caindo um tipo de chá. Ou seja, as folhas pequeninas são as que enrolam primeiro, saindo delas o melhor chá, uma vez que tem mais seiva que as folhas grandes.


Do saber profissional não obsta, contudo, os valores funcionais e simbólicos que se mantêm no essencial constantes, o sacerdócio do chá passa pela aceitação da essência dos seus conteúdos. A cada folha seu sabor. Mestre Hermano Mota explica que é da primeira folha da planta que sai o chá preto, o Orange Pekoe[8] mais aromático e de sabor mais leve, feito das folhas mais tenras. Quando as folhas ficam murchas são levadas para a máquina para serem enroladas durante meia hora; passam mais meia hora num segundo enrolador onde a ultima seiva é libertada; durante cerca de meio minuto vão para um tabuleiro, onde as folhas são agitadas para arejarem e perderem temperatura; segue-se a oxidação, (mais ou menos três horas), não se deixando, no caso de Gorreana, atingir a fermentação; a seguir o chá é colocado num forno a secar a uma temperatura de 80º C durante vinte minutos; depois procede-se ao equilíbrio, ou seja, o chá é separado por tamanhos; passa em seguida pelo peneiro de vento, onde é separado por peso; finalmente “repousa” geralmente oito meses em depósitos completamente herméticos, para que o seu paladar se vá requintando, sendo que antes de ser embalado ainda passa por uma escolha feita à mão.

Com o Hysson, o chá verde, o seu tratamento é diferente. É extraído da segunda folha planta, as suas folhas são murchas, cozidas e secas, enquanto no chá preto a oxidação é bem-vinda e a fermentação vem por acréscimo, no chá verde evitam-se as oxidações e as fermentações. Passa também pela fase de murchamento da folha, entretanto, cozem-se as folhas com vapor de água durante 3 minutos; vai depois para a máquina eléctrica para ser enrolado; a seguir leva uma passagem rápida de secador; por fim vai «descansar», para um espaço destinado a esse feito. O caso do chá verde não fermenta em contacto com o ar, as folhas já estão mortas, como já foi cozido esta fermentação não se dá. Só depois de termos feito por exemplo um litro de chá, e o deixarmos durante um dia em contacto com a água que entretanto ferveu é que este chá perde as suas propriedades, porque o que aconteceu entretanto é que oxidou.

Quanto ao chá Pekoe (quer dizer folha em japonês), Gorreana está a evitar a sua concepção. Este chá tem que ser moído, e não compensa produzi-lo porque consome muita energia. O Pekoe é feito a partir das folhas mais duras e que se partem, bem como dos talos que são muito rijos, (esses pezinhos da planta), também chamado o chá Broken (folhas partidas). Além de ser considerado um chá fraco, tem a particularidade de apresentar pouca taina, logo menos agressivo.

O chá tem uma sensibilidade muito própria e adquire com muita facilidade outros aromas. Por exemplo, se estiver perto de um sabonete, ele absorve-o logo, e isto é uma das suas particularidades. Alerta-nos Hermano Mota: desconfie-se dos chás com sabores a frutas, por norma servem apenas para esconder os chás de má qualidade (sic). Excepto o caso do considerado o melhor chá do mundo, o indiano, com paladar, corpo e vida, mas também com um preço muito alto, especificamente o que nasce na cordilheira de Assam, a dois mil metros de altitude, o oriundo da China é uma referência decisiva, num país onde os métodos de produção seguem o mesmo artesanato praticado em Gorreana. Quanto ao chá japonês, com as suas folhas liofilizadas, é o supra-sumo da técnica.

A Gorreana têm-se mantido e pretende continuar a manter-se fiel à China, até porque a primeira semente chegada a esta casa veio da China, através de Macau, coincidindo esta chegada com a necessidade de reinventar a agricultura açoriana, muito abalada em 1870 com a praga na laranja que até aí tinha sido a monocultura da ilha. Uma outra cultura, a do ananás, e que segundo o mestre de Gorreana os de São Miguel são um dos melhores do mundo, foi outra das culturas testadas que veio substituir o fim trágico do citrino.

Esta empresa que existe desde 1874, teve o seu primeiro quilo de chá produzido em 1883 (cuja data está assinalada na sua fachada) o afamado e ortodoxo[9] chá preto. Em 1998 a sua produção foi de 27 toneladas, das quais apenas três eram de chá verde. O mesmo intuito foi seguido em 1999, em que a sua safra atingiu as 30 toneladas, das quais só 3 toneladas foram para o chá verde.

- As Vicissitudes que o Chá Tem Passado
O negócio do chá teve ao longo do seu mais do que um século de vida nos Açores aventuras e desventuras. Gorreana não escapou à regra, conheceu anos ruinosos nas décadas de 70/80. Como analisa Hermano Mota, os portugueses alteraram muito os seus hábitos alimentares, só há cerca de 7/8 anos é que houve um retomar da tradição (sic). Na vertente mercantil faz uma geração que saímos do continente (sic). Até 1976/7, vendia-se no mercado continental 80% da produção, na sua maioria chá preto, e que representava nessa altura cerca de 50 a 60 toneladas de chá por ano, vendidas sobretudo na região norte de Portugal continental. Mas a empresa que fazia a sua distribuição passou por uma crise, como passaram muitas empresas nessa altura, arrastando consigo a empresa Gorreana - ficaram sem chá e sem dinheiro. As relações com a empresa distribuidora funcionavam da seguinte maneira: quando se acabava de enrolar o chá preto em Setembro, que tem um tempo de maturação, forçosamente 7/8 meses, era enviado para o continente o chá que já tinha entretanto acabado a sua fase de “repouso”. Isto faz-nos lembrar o vinho do Porto, que tem que estar um tempo em cascos, mas era assim que funcionava e ainda funciona. Esta quantidade de chá que ia para o continente ficava em depósito e à medida que era vendido eram feitas contas mensais, ou seja, o dinheiro da venda do chá reportava-se sempre ao mês anterior.

Neste momento de grande de crise, Gorreana, esteve para encerrar as suas portas, não havia mercado nos Açores, a mão-de-obra encareceu, foram três anos difíceis (sic). E porquê o não desaparecimento? O seu não desaparecimento[10] deveu-se a uma série de conjecturas, nessa época, Gorreana, já tinha uma mecanização mais acentuada que as outras empresas concorrentes – havia muitas empresas que ainda utilizavam máquinas a vapor. Além disso era mais fácil produzir leite do que chá, é pegar numas sementinhas deitar na terra e ao fim de três dias lá estão as vacas a pastar, e é tudo o que é preciso fazer (sic). Esse lugar deixado pelos produtores de chá, que arrancaram as suas plantas, permitiu a Gorreana a sua não desistência.

Afastados do continente começaram a preocupar-se em arranjar mercado nas ilhas, “navegaram” durante algum tempo. A recuperação foi lenta, mas conseguiram imporem-se, numa primeira fase, o mercado de S. Miguel e da Ilha Terceira e depois nas ilhas em geral.

Há três anos a esta parte Gorreana conseguiu uma empresa distribuidora no continente, que trabalha com chá, sobretudo chás medicinais. Entregam em pequenas quantidades – não há camiões, não há a carrinha de 3 mil quilos. Oportunidade importantíssima para Gorreana, pela primeira vez, desde há dez ou quinze anos, que se preocupam em preparar a plantação para que no ano próximo tenham chá para satisfazer as encomendas, principalmente chá verde. Tanto que este ano vão fazer mais 4 toneladas de chá verde. Das apanhas de plantas fazíamos 750 quilos, depois passamos para 2 toneladas, o ano passado 5, e este ano vamos fazer 9 toneladas (sic).

Comenta Hermano Mota: se nós fossemos uma multinacional qualquer, ocupávamos um minuto ou meio minuto numa estação de televisão, púnhamos uma senhoras muito simpáticas a fazer croché e a tomar uma chávena de chá, apelando para um produto de tradição e com alguma história (nem que seja um senhor com bigodes fartos numa fotografia), as pessoas fazem associações e dizem isto afinal tem tradição! Existe há cento e tal anos porque é que eu não conheço? Mas, não temos esse folgo. O chá precisa dessa divulgação, que tem o «efeito de abrir a porta», já experimentamos essa sensação com programas de TV, «A Praça da Alegria» de José Luís Goucha e o do «Clube Disney», este marketing ajudou a fazer reaparecer o chá no continente – isto não é novo para ninguém – a publicidade nos media tem um efeito tremendo (sic). Recorda Hermano Mota que nos anos 40, no continente, na baixa lisboeta, mais propriamente nos Restauradores, havia um enorme placar, com um enorme anúncio de chá na fachada dos cinemas, agora nesses placares estão lá anunciados os “constantinos” que já são históricos, o Brandy, o Croft – ainda me recordo dalgumas palavras nesses velhos anúncios de chá «Chá Canto, o chá dos Açores, que faz bem, etc.». Também nessa época havia pelo menos duas casas na Av. Roma que produziam chá nos Açores, duas delas era a família José do Canto e a família Hintze Ribeiro (sic).

Durante a segunda Grande Guerra Mundial as coisas mudaram, as dificuldades de exportação aumentaram. A escassez nos transportes era generalizada, mas nos Açores foi sentida com muita agudeza, dado o seu isolamento, os barcos andavam por tudo quanto era sítio aos tiros (sic), ou seja, os meios de transporte estavam ao «serviço da guerra», tendo como consequência um recuo na produção de chá, sobretudo nos produtores de folha – havia os produtores de folha e os que só se dedicavam à sua transformação. Contudo, até fins da segunda guerra mundial, o chá dos Açores era o chá que se falava no continente. Não era mistério nenhum: chá era dos Açores.

Mais tarde começou a vir o chá de Moçambique, no início os consumidores que estavam habituadas ao chá dos Açores, um chá fraco com pouco teor de tanino e de infusão transparente, continua-se a vender, ou seja, o chá verde proveniente de Moçambique, “carregado” de tanino não é bem aceite no continente, mas uma portaria do governo, isenta de impostos todo o chá que entrasse em Portugal oriundo dessa ex-colónia. Com esta medida política e proteccionista o chá dos Açores entra em desvantagem. O chá açoriano não é contemplado com nenhuma medida de protecção, bem pelo contrário, para enviar chá para Santa Maria pagava-se na alfândega, o mesmo acontecia para a Ilha Terceira, só não se pagava para enviar chá de Gorreana para Ponta Delgada. Esta condescendência para com o chá de Moçambique foi uma grande “machadada” no chá dos Açores (sic). Portugal foi invadido de chá proveniente da colónia moçambicana. O chá Moçambique não é melhor nem pior – era diferente. Nestas coisas do chá não há o melhor chá do mundo, melhor chá é aquele que gostamos, é como o anúncio de cerveja Carlsberg «provavelmente a melhor cerveja do mundo» – provavelmente! (sic). Mas o que verdadeiramente os Açores precisava, segundo o meu interlocutor Hermano Mota, era de chá para exportar, embora fossem declaradas no Grémio da Lavoura setecentas toneladas, o que se produzia verdadeiramente era novecentas ou mil toneladas, mas precisávamos de muito mais (sic).

Uma das medidas com a qual o «senhor de Gorreana» se congratula é ter tido a "sorte" de, com a revolução industrial na área do chá, não ter sido instalado uma caldeira na fábrica como muitos fizeram mas, terem optado pelo sistema eléctrico. Geograficamente foi propício ter avançado com este sistema até porque existe um ribeiro com bom caudal que corre o ano inteiro, muito perto fábrica. Fizeram uma represa, pequena é certa, criaram uma queda de água com 80m metros, colocaram uma turbina, uma hidro e um gerador e eis que ainda funciona (sic). Nesta época a facilidade de energia permitiu ter motores eléctricos em vez de lenha para as máquinas a vapor. Segundo Hermano Mota, esta escolha, permitiu uma certa facilidade, uma certa folga, permitindo-lhes resistirem à guerra, ao chá de Moçambique, à falência da firma distribuidora de chá no continente. Em suma, as vicissitudes que o chá tem passado foram várias: foi a Segunda Grande Guerra Mundial; foi o chá de Moçambique; foram as máquinas a vapor, que entretanto tiveram o seu período de vida, efémera diga-se de passagem (sic).

Os contratempos do chá não se ficaram por aqui, a última das crises deu-se há cerca de oito anos com a abertura do primeiro hipermercado na ilha e a consequente chegada de novas e mais baratas marcas de chá. No melhor mercado, S. Miguel, as vendas baixaram em 43%, devido a estes novos espaços (sic). Para agravar esta crise contribuiu a grande seca de 1991, que limitou a produção a sete toneladas - num bom ano, a média é de 25 a 30 toneladas. Foi outro dos períodos diabólicos, tão diabólico que a família renui-se para tomar uma decisão sobre o rumo de Gorreana. A família tinha uma casa comercial em Ponta Delgada sem fazer negócio. A pergunta é: o que é que se faz? A unanimidade era continuar. As pessoas voltariam a beber chá. Tiveram que vender património para manter esta situação mais dois anos. Foi uma boa aposta, e a verdade é que Gorreana mostra algum interesse, sobretudo por causa do desenvolvimento turístico em S. Miguel e de uma maneira geral nas restantes ilhas açorianas, principalmente Faial e Pico, e mesmo para Ilha da Madeira, onde se vende algum chá.

Diz-nos mestre Gorreana que estes pequenos mercados, estas pequenas vendas são importantes para Gorreana. Se em 10 pessoas que experimentem o nosso chá, duas ficarem com o hábito de o beber, essas duas irão trazer (dar a beber), mais umas tantas e assim vai fazendo parte do consumo de quem o ingere. A transmissão da primeira vez que se o bebe o chá é importante (sic).

A exportação não tem tido grande peso nas vendas, das 27 toneladas vendidas o ano passado, apenas três foram para os Estados Unidos e Canadá, e mais três para a Alemanha, onde os clientes são algumas casas de chá e particulares que recebem a mercadoria pelo correio. Dado ser um cliente assíduo dos correios de Ponta Delgada, no seu jeito brincalhão, Hermano Mota diz que até tem direito a cartão de boas-festas. Para o continente vendeu três toneladas, sendo que as restantes 18 toneladas foram consumidas no mercado açoriano.

O comércio do chá de Gorreana, na sua maior parte é comercializado nas ilhas açorianas, mas as três toneladas consumidas no ano passado, no continente, provam haver agora uma redescoberta, um despertar para o seu consumo. Porém, fora de Portugal o mercado americano é importante de duas maneiras, primeiro porque uma grande parte do chá que é vendido em S. Miguel e de uma maneira geral em todas as ilhas destina-se ao consumo de pessoas que estão imigradas nos EUA. Ou seja, praticamente toda e qualquer pessoa das ilhas tem um parente, seja ele irmão, tio, primo, cunhado, etc., que está nos Estados Unidos e sempre que podem enviam (muitas vezes a pedido destes) o nosso chá Gorreana (sic). Nos Açores, viaja-se muito para os EUA, e o chá faz parte da lembrança que se leva para os familiares, para os amigos, para além disso não traz preocupações alfandegárias. É por esta razão que, uma parte considerável do chá vendido nos Açores acaba por ser consumido noutro mercado, nos Estados Unidos. O seu principal consumidor é o açoriano, todavia começa a entrar nos hábitos de alguns americanos, onde o chá é vendido a um preço alto, em pequenos retalhos. Assim, vão aparecendo os mercados de acordo com as promoções turísticas ou não, que o governo e as pessoas em geral vão fazendo.

Longe de ser uma empresa lucrativa, Hermano Mota, afirma a sua sobrevivência por carolice da família, que tem procurado noutro tipo de agricultura a viabilidade da empresa, que pretende não deixar morrer e a que as instituições não têm dado apreço e muito menos ajuda. Confessa que é à sua lavoura com 140 vacas e ordenha própria, que tem encontrado o equilíbrio para os momentos menos bons do chá. O homem de Gorreana não se deixa arrastar por conversas do «coitadinho», até porque, como diz, os jovens são os grandes consumidores do chá em potência. Disso não tenham dúvidas. Não sei se sabe, continua Hermano Mota, a nível mundial o chá é a bebida mais consumida, bebe-se mais chá do que coca-cola (sic).

O chá tem história e está de boa saúde, afirma Hermano Mota, passada aquela fase difícil pós 25 de Abril que se prolongou até aos anos 80/85, em que as pessoas tinham aversão a tudo aquilo que era tradição, já passou, noto que hoje há uma preocupação com tudo aquilo que é “passado” (sic). Cada vez mais o número de visitantes em Gorreana aumenta.

A postura displicente foi-se afastando, e Hermano Mota recorda um episódio que observou: aquando de uma visita há alguns anos, por parte dos alunos da Universidade dos Açores, percebi-lhes algum desencanto com que estavam aqui dentro, pondo questões deste género: «então! Mas como é? Isto ainda existe? Isto já não devia ter acabado?», bem, o “tom” era este. Eram alunos entre os 18 e os 25 anos mais ou menos (sic). Mas estas visitas não pararam, e mestre Gorreana nota com satisfação sobretudo na “rapaziada” do preparatório, mais sensibilidade, mais predisposição para ouvir e perceber, conhecer as “coisas” do chá. Têm mais vivacidade, mais interesse, fazem mais perguntas, interrogam com mais facilidade, têm alegria no interrogatório que fazem, riem daquilo que perguntam, fazem chacota, mas isto é saudável na maneira de estar, de conhecer, de aprender, isto espantou-me. Recordou-me que na época em que tinha a idade deles, para falar, fazer uma pergunta, tinha que por o dedo no ar, timidamente, com a bata bem abotoadinha, e manter-me de pé. Era outro tipo de “ginástica” (sic).

- A Crença nas Propriedades Curativas
Assente numa estrutura familiar, esta empresa, pretende produzir este ano, como nunca o fez no passado, quatro toneladas de chá verde, isto porque a sua procura é mais intensa, explicando que a isso se deve uma certa crença, ou seja, o chá verde é tido com propriedades curativas. Augusto Gomes (1987: 245) um contista de mérito nascido em Angra do Heroísmo no seu livro a Cozinha Tradicional da Ilha de São Miguel diz-nos que: “Foi durante muito tempo [o chá] apenas cultivado por Chineses e Japoneses, que, além de fazerem dele a sua bebida nacional, empregavam-no como medicamento eficaz e depurador das águas inquinadas”. Hermano Mota conta a este propósito um episódio com alguma satisfação: entre as muitas pessoas que recebe em Gorreana, recebeu um dia a visita de um médico que fazia investigação dos benefícios e malefícios de bebidas, nomeadamente o café e o chá.

Explicando ao médico todos os pormenores da produção no fim da visita, foi a vez do médico dar a sua palestra mais ou menos assim: o clínico em causa argumentava que a cafeína actua sobre o sistema nervoso central, enquanto a taina actua sobre o sistema muscular. Daí podem estar certas aquelas pessoas que dizem socorrer-se do chá para estudar e trabalhar durante longas horas a fio (sic). Não se metendo neste assunto mas aceitando a aprendizagem, Hermano Mota, passou a acreditar neste prognóstico. Quanto a mim, durante a elaboração deste trabalho acompanhei-o com o Orange Pekoe, deixei praticamente chegar ao fim o pacotinho, será que ele (o chá) me acelerou e me inspirou, de qualquer modo achei interessante.


Bibliografia
COSTA, Carreira da (1978), Esboço Histórico dos Açores, Instituto Universitário dos Açores – Ponta Delgada, Editora Livraria Pax, Braga.
D'ALMEIDA, Gabriel (1892), Manual do Cultivador e Manipulador do Chá, Ponta Delgada, Typo-lythographia Minerva.
GOMES, Augusto (1987), Cozinha Tradicional da Ilha de São Miguel, 2ª edição, Região Autónoma dos Açores, Secretaria Regional da Educação e Assuntos Sociais – Direcção Regional da Cultura, Angra do Heroísmo.
JESUS, Montalto de (1990), Macau Histórico, Edições Livros do Oriente.
OLIVEIRA, A. P. Lopes (1967), Ilhas de Bruma: Roteiro Açoriano, Editora Livraria Pax, Braga.
·ARQUIVO DOS AÇORES, Volume I, 1980, Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, Imprensa Nacional Casa da Moeda.
·DIRECÇÃO ESCOLAR PONTA DELGADA – APONTAMENTO HISTÓRICO ETNOGRÁFICO, II Volume, 1982, S. Miguel de Santa Maria.


[1] Os valores médios da temperatura do ar em S. Miguel são: 16º C na Primavera, 21º C no Verão, 18ºC no Outono e 14ºC no Inverno.
 [2] S. Miguel tem uma superfície de 759,41 Km2, com um comprimento 65 Km e uma largura máxima de 14 Km. Esta ilha faz parte do grupo Oriental, tendo a sul a ilha de Santa Maria (55 milhas) e a nordeste a ilha Terceira, do grupo central (90 milhas). Situada a 25º 30’ de longitude oeste e 37º 50’ de latitude norte.
[3] DIRECÇÃO ESCOLAR PONTA DELGADA – APONTAMENTO HISTÓRICO ETNOGRÁFICO, II Volume, S. Miguel de Santa Maria, 1982, p.246.
[4] A primeira quantidade de chá fabricada pelos dois referidos chineses - que trabalhavam sob a alçada de uma comissão nomeada pela Sociedade Promotora da Agricultura, “(…) teria como relator o Dr. Ernesto do Canto e dir-nos-ia que as primeiras quantidades de chá aqui fabricadas [em S. Miguel] foram de 8 Kg. de chá preto e 10 de chá verde” (Costa: 1978: 220).
[5] ARQUIVO DOS AÇORES, Volume I, Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980, p. 535.
[6] O tanino é um dos elementos que compõem a seiva das plantas, uma substância básica, antiácida, destigente.
[7] A poda realizada ao arbusto tem como fim aumentar a produção das folhas, esta é feita de maneira a dar à copa uma forma esférica ou piramidal com o objectivo de os ramos terem o mesmo grau de vegetação, ou seja, a poda é feita pela base com o intuito de obter novos ramos e melhor folhagem.
[8] O Orange Pekoe é uma referência clara ao Duque de Orange, da Companhia das Índias ocidentais, iniciador do comércio de chá.
[9] Segundo a explicação de Hermano Mota, por ortodoxo entenda-se: o que é tradicional, ou seja, quando os chás onde as folhas estão secas e quase na integra. Assemelha-se muito ao chá enrolado com as mãos e com os pés, à maneira da China e da Indonésia (sic).
[10] Nos anos 80, das quatro fábricas de chá existentes na ilha Açoriana, três desapareceram: o Chá Barrosa, cujas instalações arderam, e o Chá Faria e Maia, que fechou.

Junho/2000
Fernando Baleiras

A Sociedade Balinesa Sob o Ponto de Vista Político (O Estado Teatro do Século XIX)

“NEGARA – A ACÇÃO SIMBÓLICA DO PODER E DA TEATRALIDADE"

"Todo o sistema de poder é um dispositivo destinado a produzir efeitos nomeadamente aqueles que se comparam às ilusões criadas pela maquinaria do teatro".
Georges Balandier

Um dos campos de análise mais apaixonantes[1] da antropologia é, sem dúvida, o da política. O Político não existe na realidade (o político é muita coisa), quando falamos de político, estamos a criar um quadro de conceitos, identidades abstractas, mas que permitem demonstrar a realidade – o conceito só tem sentido porque ele tem força heurística, essa arte de inventar, de fazer descobertas. Só há Ciência porque nós trabalhamos a partir de conceitos. Político é uma óptica de abordagem do social que vive sempre misturado com outras dimensões do social. O político está em todo o lado, mas nós por razões de análise definimos conceitos e tentámos ver as relações sociais sobre a óptica da política.

É através do estudo das instituições implicadas no dinamismo, transformação e perpetuação das sociedades, que o antropólogo pode sentir o «pulsar» de qualquer sociedade, seja ela ocidental ou outra, porque afinal a política é, como diz Balandier (1999: 16) “ (…) um instrumento de descoberta e de estudo de diversas instituições e práticas que asseguram o governo dos homens, assim como dos sistemas de pensamento e dos símbolos que os fundamentam”.Sendo o simbólico um jogo de comparações, de equivalências, este simbólico é, necessariamente, indispensável à actividade do político. É nesta perspectiva que nos interessa abordar, analisar e problematizar neste trabalho a monografia de Clifford Geertz, Negara – O Estado Teatro do Século XIX, os mecanismos da ascensão do poder, bem como a acção simbólica do poder e da sua teatralidade.


Fazendo uma abordagem à acção simbólica do poder e da teatralidade na política tradicional do sudoeste asiático, Geertz, pioneiro das correntes hermenêuticas, virá a desenvolver, a reformular, os fundamentos epistemológicos da antropologia. Sendo a hermenêutica a ciência da interpretação, para Geertz, a verdadeira missão da antropologia não é a observação comportamental das outras sociedades, mas a compreensão do ponto de vista que os seus membros detêm da sua própria sociedade. Isto é, Geertz via a “cultura[2]” e a sua análise não como uma ciência experimental, mas como uma ciência interpretativa em busca de significados.


Geertz, construindo um “retracto” da organização balinense oitocentista, utilizando uma abordagem etnográfica, a partir da política praticada pelo Estado tradicional balinês, elabora diversas questões antropológicas, que serão ponto de ruptura com as conceptualizações da antropologia política precedentes do movimento pós-modernista do qual fez parte. Através de uma descrição minuciosa da sociedade balinense, das suas instituições e relações sociais, esta obra é, como diz Miguel Vale de Almeida em Nota de Apresentação, “ (…) uma incursão antropológica na história, através da reconstituição de uma formação social do século passado e da instituição do Estado; por outro tem implícita uma crítica ao pensamento ocidental sobre a política e o Estado” (Geertz 1991: IX-X). Encontramos porém, na sustentabilidade das suas teorias, um efeito de sucussão, um modo de exploração que produz «ruído», como que um abanão muito estremado.
Política e poder são duas categorias que caminham lado a lado. As relações de poder, por exemplo na aprendizagem, são relações de poder inevitáveis – o professor é que dá as notas e não os alunos, ou seja, no momento em que estamos a aprender estamos a relacionarmo-nos politicamente. Daqui resulta que a obtenção, a implementação duma ordem social precisa tanto de um sistema de pensamento como de uma força capaz de exercer o poder e para que isto aconteça é necessário que haja quem exerça esse mesmo poder e quem se submeta a ele.

Contextualização

- Nobreza e campesinato: fragmentação e integração

Estratificada, com um sistema de castas, a sociedade balinesa “ (…) foi uma pirâmide acrobática de «reinos» com graus variados de autonomia substancial e poder efectivo” (Geertz 1991: 28). Da enorme afluência de modelos culturais económicos e sociais, Geertz constata a ausência da mais importante das instituições, considerada essencial para a formação do carácter básico civilizacional da Indonésia, sendo que essa instituição é o Estado traduzido por Negara[3].


O equilíbrio do poder no Bali tradicional assentava na distinção entre nobreza e campesinato; na variedade do sistema de parentesco e no clientelismo. Consequentemente, o equilíbrio dentro dos reinos era delicado, pois ora se inclinava para um lado, para a integração, ora para a fragmentação. Quando Geertz faz a distinção entre nobreza e campesinato, o que pretende é focar o contraste, mencionar a separação, mostrar a existência de dois tipos de formação política muito diferentes, mas ao mesmo tempo interligados, i.e., um deles centrado nos processos políticos regionais e inter-regionais e outro centrado em processos locais de natureza instrumental. Tratava-se de uma questão complexa entre instituições do Estado-teatro e as do governo local.


Desenhando uma área de influência política, no Bali, clima e geografia determinam a expansão do poder. Segundo Geertz, a morfologia geográfica permitiu desenvolver sistemas de controlo político, económico, social e ritualista, dispersos ao longo das encostas. Consoante a altitude da ilha, assim esta apresenta características naturais diferentes – a Sul planícies, e a Norte as montanhas. Esta caracterização geográfica leva a que existissem conflitos, atendendo a que uns queriam fomentar a unidade regional e outros a independência local ou sub-regional. “O interesse a curto prazo dos senhores das terra altas era sempre, pois, a fragmentação, pelo menos na generalidade da região; o dos das terras baixas era a integração” (ibid.: 35). Consequentemente, como resultado desta paisagem, passou a existir conflitos e lutas pelo poder, entre o Norte e o Sul. Esta situação faz com que surjam aliados e alianças entre os dois pólos. “ (...) qualquer senhor importante de um domínio vizinho prestava de bom grado ajuda a uma rebelião das terras altas que pudesse enfraquecer um rival das terras baixas” (id. Ibid.: 36-37).

- A classe dirigente e as suas instituições
As estratégias utilizadas para a organização interna das relações políticas da classe dirigente, eram feitas do seguinte modo: o sistema de castas; o grupo de descendência (a dadia) e o padrão do status decrescente; do clientelismo; e das alianças matrimoniais. No sistema da dadia fazem parte os indivíduos que são considerados descendentes agnáticos de um mesmo antepassado. As dadias eram autónomas, sendo unidades de organização do Estado, elas competiam pelo poder e pela influência, uma vez assegurado estas componentes invocavam direitos rituais para a legitimação do poder. Como eram essencialmente federações, as dadias, podiam lutar entre si pelo poder, mas não podiam alterar a estrutura da autoridade.



Com uma organização peculiar, e estabelecendo entre eles relações, em Bali existem três campos de competências são eles: o banjar, o subak, o pamaksan. “ (...) esta tríade de corporações forma o coração político do sistema desa (…)” (Geertz 199: 75). Tendo o rei a manutenção do poder, este irradia prestígio, sendo que a um nível «inferior» realizam-se as coligações políticas, porém este não se pode afastar das bases, pois a obtenção e reprodução do poder tornava-se uma tarefa complicada.


A nobreza conglomerava as três varnas superiores: Brahmana, Satria, Wesia e o campesinato os Sudras. Todavia, entre os nobres nem todos possuíam poder, i.e., não podiam exercer papéis políticos relevantes em qualquer ocasião. Esta questão propiciava uma outra, competia aos Sudras prestar anuência e deferência aos que possuíam poder, e apenas deferência aos que não o possuíam. Desta maneira, a classe dirigente era representada por uma minoria dentro da globalidade da nobreza. Embora os Brahmanas fossem detentores do status, eram, salvo raras excepções, impedidos de ascender ao comando, no entanto, se aos Sudras era possível alcançar o poder faltava-lhes a qualificação «moral» necessária. Apenas os Satrias e os Wesias poderiam adquirir legitimidade para exercer a autoridade.


A segunda instituição na qual assentava o poder do Estado era no sistema de parentesco. As castas superiores agrupavam-se em termos de descendência agnática, ou linhagens. Eram grupos endogâmicos, em que o casamento preferencial se fazia entre primos paralelos. Deixando os grupos antigos inalterados, processo considerado como uma diferenciação, a formação de novos grupos não se baseava na cisão dos mais antigos. Porém, os antigos grupos decresciam em status à medida que os novos grupos se geravam, resultando daí a formação de uma estrutura hierárquica de grupos de descendência flexível, na qual a autoridade se baseava no parentesco. Isto é: “O sistema de títulos conferia legitimidade: [e] o sistema de parentesco dava-lhe forma social concreta” (ibid.: 43).


O clientelismo, a terceira instituição, funcionava em primeiro lugar dentro da própria dadia, alargando-se num contexto mais geral. Organizado pela casta e pelo parentesco, embora o clientelismo fosse importante dentro dos dadias, teve a sua expansão através das fronteiras das mesmas, produzindo assim uma estrutura que se espalhava irregularmente pela região. “O clientelismo fornecia um modo de forjar laços através de fronteiras fixas do status e da consanguinidade, bem como do modo de realinhar as relações dentro destas” (id. ibid.: 50).


Ocorre assim três formas de afiliações extra-grupo do parentesco: entre dadias dominantes e subordinadas, com função meramente política; entre dadias dominantes e sacerdotais, sendo a forma somente religiosa; entre dadias dominantes e a comunidade minoritária, sendo a função/forma económica.


Havia no entanto um último sustentáculo em que assentava a organização do Estado: a aliança. As alianças eram elaboradas num campo cultural e simbólico, constatando-se a existência de uma ética de boa educação que unia toda a comunidade na qual imperava a etiqueta como força de lei, e em que as más intenções surgiam envoltas em cortesia. Constantemente construídas e destruídas, estas alianças, originavam por sua vez uma ininterrupta formação de alianças.


Elaboradas também num sistema de observâncias religiosas, as alianças, processando-se ao nível de tratados formais assinados entre os principais poderes da ilha, eram o baluarte de uma ordem global. Todavia, estes tratados funcionavam de uma forma negativa, “ (…) parecem ter sido concebidos mais para codificar os pretextos com as quais as alianças podiam ser quebradas do que para estabelecer as bases da sua construção" (Geertz 1991: 62). Provocadas através de razões criadas propositadamente, de forma a que o sistema perfeito não fosse atingido: ”Em lugar de criarem unidade política, forneciam (…) um insulto delicado, uma observância ritual negligenciada, um presente inadequado ou uma vaca confiscada (…)” (ibid.: 63).


Os laços entre governantes e governados eram dispersivos, devido ao aparecimento e desaparecimento dos poderes, à constante fragmentação das classes dirigentes, porém, o aldeão continuava a sua vivência sendo explorado e vítima de opressão, mas inalterável, ou seja: “O Estado – arbitrário, cruel, (…) era visto como estando montado sobre o «comunismo patriarcal» da sociedade aldeã, alimentando-se dela, por vezes causando-lhe estragos, mas nunca a penetrando realmente” (id. ibid.:65).

- Organização política,económica e religiosa

Dentro deste contexto, o entendimento da sociedade balinesa sob o ponto de vista político, exige a necessidade de observar as formas de governo local e simultaneamente constatar a importância das principais características da sua formação: a organização política, económica e religiosa. Estas organizações separadas, mas relacionadas, assentam num amplo leque de funções governativas.

A política assentava no ordenamento dos aspectos públicos da vida da comunidade, sendo uma sociedade hierarquizada, o seu funcionamento centrava-se na entidade comunal. O subak, o «lugar», era a comunidade civil fundamental em Bali, além de ser uma unidade de residência, era também uma associação pública que regulava a vida da comunidade através de reuniões em que eram decididos todos os assuntos inerentes aos problemas comunais. Assim, a regulação da vida social era realizada pelo «lugar», proporcionando uma liberdade ao Estado que em vez de o administrar o teatraliza.


Sendo a agricultura do arroz de regadio a principal actividade camponesa de Bali, de igual modo importante era a organização económica. A função principal subak era o controlo da irrigação necessária, regulando o calendário do ciclo do cultivo através do controlo do plantio, dando oportunidade a cada comunidade o poder de gerir o seu próprio recurso. Os seus membros eram co-proprietários e como acontecia no «lugar» havia reuniões e líderes com funções de estabelecer regras, rituais comunais e obrigações de tarefas. “O lugar moldava as interacções sociais quotidianas (…) o subak organizava os recursos económicos de um grupo de camponeses” (Geertz 1991: 71).


Por último, a terceira instituição funcionava através do elemento religioso, como aglutinador e regulador do Estado, por forma a legitimar o poder. Contudo, esta instituição apesar de religiosa era organizada por leis jurídicas, sendo ao mesmo tempo um vínculo entre as formas de culto e os comportamentos sociais.


Ao relacionarmos estas três instituições verificamos que os seus membros não coincidem, apenas se interceptam e justapõem, i.e., as sociedades de irrigação poderão ter membros de várias congregações e de vários lugares, os membros dos lugares poderão ser provenientes das sociedades de irrigação e vice-versa. Em suma, estes constituintes formam o cerne político do sistema desa, i.e., a formação de todo o sistema político aldeão balinês. O sistema de irrigação como formação política, como diz Geertz:
“ (…) consistia num conjunto ascendente de camadas sociais, equilibradas, a cada nível e a cada dimensão (…). Tal como o negara estava esticado entre duas forças centrípetas do ritual de Estado e as centrífugas da estrutura do Estado, assim também o sistema subak, uma das bases sobre as quais o negara assentava, estava esticado entre a sua natureza dispersiva (…) e as exigências integradoras sobre ele exercidas pelo culto do arroz” (1991: 11).

- A força motriz da política: a procura de prestígio

“Os rituais reais (…) levavam à cena, e sob a forma de cortejo, os principais temas do pensamento político balinês: o centro é exemplar, o status é o terreno do poder, a arte de governar é uma arte teatral” (Geertz 1991: 152)

Entendida como uma sociedade assente numa organização de pequenas comunidades autónomas entre si, vista de dentro, a indonésia pré-colonial teve um desenvolvimento político assente numa difusão de principados localizados e inter-relacionados.


Não revelando uma formação de estados independentes, organizados de forma hierárquica, o poder político do Bali clássico, revela, sim, um enorme campo de laços políticos muito diferentes, que se vão constituindo uns maiores que outros, formando um todo. A formação do Estado nunca se efectuou duma só vez e num só local, mas em vários sítios e em vários alturas. Ou seja, embora existisse «estrado» de poder, “(...) as funções do governo: não estavam concentradas, mas sim dispersas; não focadas num sistema hierárquico de instituições executivas, mas sim disseminadas através de uma pluralidade de instituições, cada qual independente em alto grau, autónoma e diferentemente organizada” (ibid.: 88-89).
Tudo isto para dizer que o Estado balinês parece nunca se ter inclinado muito para a tirania, a sua governação foi sempre virada para o espectáculo, para a cerimónia, considerada a força motriz da política, todavia, era uma instituição que fomentava a desigualdade social e se orgulhava do seu status. Segundo Geertz: “Tratava-se de um Estado-teatro no qual os reis e os príncipes eram os empresários, os sacerdotes os encenadores, e os camponeses os actores, equipa cénica e público” (id. Ibid.: 25).


Perante uma sociedade que é detentora de um Estado efémero, onde se confundem momentos de centralidade, como é o caso das cerimónias fúnebres, é à volta destas que se encontra o Estado-teatro. A cerimónia, considerada como a força motriz da política da corte, o ritual não era o apoio do Estado, porém era o Estado o dispositivo para a realização do ritual das massas, logo o poder servia a pompa e não o contrário. Tanto que, o domínio do poder expresso pelo conceito Negara, traduz-se numa política controlada, na qual “ (…) a corte molda o mundo à sua volta numa aproximação (…) da sua própria perfeição” (id. ibid.: 26).


Era através da manipulação dos sentimentos, das emoções, que o poder era exercido, na medida em que as “ (…) espectaculares cremações, limagens de dentes, consagrações dos templos, peregrinações e sacrifícios de sangue, mobilizando centenas e mesmo milhares de pessoas e grandes quantidades de riqueza, não eram meios para fins políticos: eram os próprios fins, aquilo para que o Estado servia” (id. ibid.: 25). A capacidade que o rei tinha em mobilizar as grandes massas populacionais não era pela riqueza material, mas sim pelo prestígio. Tanto que a discórdia entre os vários estados quase nunca tinha a ver com acumulação de território, mas com a acumulação de prestígio.

Não será a política-teatro uma constante no universo político das nossas sociedades?
Num real que é tão imaginoso quanto o imaginário, na sociedade balinesa, a política é acção simbólica. A teatralização em torno das diversas cerimónias e rituais no Bali são um modo de expressar o poder político.


Na sociedade balinesa, como já vimos, não existia a concentração de poder, excepto no ritual fúnebre do Rei, aqui ele apresentava-se como Estado, e ao mesmo tempo mobilizador de pessoas. As formas simbólicas e teatrais revelam-nos que o ritual é poder, é este que permite ao Estado despoletar nas pessoas o desejo da ascensão do Rei, granjeando-lhe poder e dominação. “A concepção balinesa é, de facto, que a experiência sensível reproduz, ou pode fazer reproduzir através do ritual, a estrutura geral da realidade; e ao fazê-lo sustenta essa estrutura” (Geertz 1991:137). Os meios são os próprios fins. A força do simbólico está na força de enunciar que é capaz de fazer aquilo que propõe: «dizer é fazer/agir».


É nos rituais de cremação que o simbólico e o poder atingem o seu clímax, aqui a pompa está patente, a arte de governar é também arte de representar. “Uma cremação real não era um eco de uma política que acontecia algures noutro sítio. Era uma intensificação de uma política que acontecia em todos os outros sítios” (Geertz 1991: 152).


Se o objectivo destas cerimónias é a dominação, e o simbólico permite obtê-la sem recorrer à força, a sua eficácia verifica-se através dessa mesma força de mobilização. Daí que o poder político não possa viver sem o simbólico. Simbólico este que mais não é que um acto mágico, que através da palavra tem como objectivo um fim como sucesso – poder e simbólico estão assim relacionados. Porém, este tipo de poder, que está presente, está mascarado, por isso, é necessário descobri-lo, é, sublinhando Bourdieu:
“ (…) uma espécie de «círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma» - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, (....) o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (1989: 7-8).

O processo da política espectáculo é-nos indicado por Geertz, mas será que somente o encontramos em Negara? Não será a política-teatro uma constante no universo político das nossas sociedades? Como o demonstrou notavelmente Balandier:
 “ (…) todo o universo político é um palco ou de uma maneira geral um lugar dramático onde são produzidos efeitos. O que mudou particularmente desde alguns decénios são as técnicas utilizáveis para este fim cuja utilização se modifica segundo o tipo de sociedades" (1999: 98).


Ou ainda, como diz Bourdieu:
“A vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta de classes, como uma relação propriamente simbólica (…) entre representantes dando uma representação e agentes, acções e situações representadas” (1989: 175).

Será legitimo questionar os conceitos balineses através das nossas próprias concepções? Será que podemos concluir que não existiam instituições formais daquilo que numa perspectiva ocidental poderemos considerar como Estado? Ou, por outro lado, podemos entender a conceito de Negara através da apreensão das categorias nativas?

A questão do político em Negara surge através da discussão: existe ou não existe Estado? Pensamos que para além da noção de Estado encontramos uma outra questão: encontramos indivíduos possuidores de um maior engenho de «fazer» política e que simultaneamente conciliam uma maior habilidade de mobilização do público.

“O capital político é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento (…) O capital pessoal de «notoriedade» e de «popularidade» – firmado no facto de ser conhecido e reconhecido na sua pessoa (de ter um «nome», uma «reputação», etc.) e também no facto de possuir um certo número de qualificações específicas que são a condição da aquisição e da conservação de uma «boa reputação» – é frequentemente produto da reconversão de um capital de notoriedade acumulado em outros domínios (…)” (Bourdieu 1989: 187-191).

Desta forma, a capacidade de mobilização de pessoas através do cerimonial e de toda a organização política, é dinamizada, essencialmente, através do exercício da influência pessoal. Uma forma de poder e dominação carismáticos?

Se nos damos conta de uma sociedade fortemente estruturada em torno de uma comunidade local, apercebemo-nos da existência de um elemento: centralidade – idêntico ao Estado, sem contudo o ser. Aparentemente não existem organismos centrais e reguladores, se as alianças detêm também elas um carácter efémero, onde está então o Estado? A hierarquia do poder revela-se mais pela aliança do que pela vassalagem, sendo o soberano a garantia dessa mesma hierarquia. Apesar do poder não ser de forma alguma sólido, os «senhores» investem na manutenção desse poder instável. Afinal este investimento oferece-lhes mais valias, que lhes advêm do prestígio. Será este prestígio obtido independentemente dos recursos económicos?

Encontramos algumas contradições neste universo aparentemente harmonioso, nomeadamente na questão do clientelismo. Quando Geertz diz (1991: 50): “Embora funcionasse dentro do contexto geral instaurado pela casta e pelo parentesco, o clientelismo diferia de ambos pelo facto de não ser adstrito mas sim contratual, específico em vez de difuso, informal em vez de jurídico, irregular em vez de sistemático”. Perguntamos: as noções contratuais e jurídicas poderão ser pensadas separadamente?

Mas outra incompatibilidade nos assalta, a questão das hierarquias apresentasse-nos algo contraditória. Na relação soberano/sacerdote, recorrendo a Dumont, Geertz dirá:
“Na Índia, (…) o rei era o que Louis Dumont chamou uma figura mais «convencional» do que «mágico-religiosa» – um governante «despossuído de funções religiosas propriamente ditas», cujos sacerdotes o punham ritualmente em contacto com o outro mundo do mesmo modo que os seus ministros o punham em contacto, administrativamente, com este mundo. E, por fim, em Bali (…) o rei, que não era um mero eclesiarca, era o centro numinoso do mundo, e os sacerdotes eram os emblemas, os ingredientes e os gerentes da sua santidade”. (1991: 159).

Só que a argumento de Dumont sobre os temas da hierarquia e do poder exige ser discutida. Para Dumont (1992: 124), há “ (…) uma distinção absoluta entre sacerdócio e realeza. (…) O poder está, no absoluto, subordinado ao sacerdócio, ao passo que, de facto, o sacerdócio está submetido ao poder. Estatuto e poder, e consequentemente autoridade espiritual e autoridade temporal, são absolutamente distintos".

A visão de Dumont é uma visão tradicional sobre a Índia, tem um ponto de vista conformista, que vai de encontro ao senso comum ocidental. A complexa estrutura da sociedade Indiana não nos permite «aceitar» os arranjos estruturais hierárquicos teorizados por Dumont[4]. A realidade etnográfica não é aquilo que nós queríamos que ele fosse. Transparece no texto de Dumont uma apropriação dos factos etnográficos da sociedade indiana para justificar a suas auto-referências. É nas castas que a problemática da hierarquia encontra o seu epicentro, o homo hierarchicus ao longo do texto procura sistematizar através dos dados etnográficos aludidos, esta questão – a das castas. Só que situações de carácter etnográfico que trazemos aqui como exemplo relativizam as perspectivas de Dumont:
“ (…) no sistema de castas, é relativamente inquestionável a posição dos brâmanes e dos intocáveis. Na zona média do sistema, cada grupo social produz «argumentos» que pretendem provar a superioridade do seu próprio estatuto. O discurso das diferentes castas e os argumentos produzidos cruzam-se numa rede complexa de oposições, num jogo incessante de identidades relativas. Não existem, aqui, quadros definitivos, nem posições estáveis. De aldeia para aldeia, de região para região, vemos alterar-se a morfologia social: os grupos em presença raramente são os mesmos, modificando-se, portanto, as relações e os critérios que permitem codificar as diferenças” (Gomes da Silva 1990: 94-95).

Estamos perante elementos que se consubstanciam, há como que uma situação de equilíbrio onde a realidade faz esta ligação equilibrada entre semelhante e diferente. Como nos diz Madeleine Biardeau, (1972: 28):
“(…) la hiérarchie sociale est définie par un ordre purement extrinsèque à ses membres. Le brâhmane n’est pas supérieur par nature, mais seulement par position. Il peut évidement déchoir de sa caste en agissant contrairement à ses devoirs, mais cela fera de lui un «hors-caste» et non un Ksatriya, ni un sûdra”.


Neste contexto, existe uma «linha» que os leva de um ao outro. São semelhantes e distintos ao mesmo tempo, há uma polaridade versus continuidade. “Colocados, respectivamente, nos níveis superior e inferior da escala dos estatutos, brâmanes e intocáveis (puros/impuros) delimitam um espaço hierárquico que Dumont recusa conceber como uma «cadeia de poderes sobrepostos" (Gomes da Silva 1994:195).

Quaisquer que sejam as contendas há que perguntar: se o poder existe como é que ele se resolve? Dependendo de quê? De quê ou de quem está ele dependente? É possível hierarquizar de uma forma tão radicalmente rígida como o fazem Geertz e Dumont? A construção teórica mergulha na contradição. Encontramos em Geertz o arrastamento das suas postulações.


Algumas notas conclusivas

Certas questões na monografia Negara – O Estado Teatro do Século XIX caracterizam o autor, nomeadamente a tentativa de isolar os elementos importantes da acção simbólica que cercam o Estado-teatro. No seu estudo interpretativo, que representa um esforço para aceitar a diversidade entre as várias maneiras que os seres humanos têm de construir as suas vidas, no processo de vivê-las, Geertz conclui que as cerimónias, os ritos e os espectáculos de Estado são o próprio Estado, os quais produzem um corte na concepção tradicional das relações entre o mito e a realidade, dando ênfase ao simbolismo de toda a acção política. Mas, ao longo do seu texto damo-nos conta de várias ambiguidades. Apesar do desajustamento encontrado, não podemos, todavia, deixar de não aceitar a contribuição de Geertz como ponto de partida para a discussão do inúmeros trabalhos, deixando o seu texto, de certa forma, problemas em aberto, até porque, como o próprio autor diz, o seu estudo propõe-se “ (…) a poder ser lido de vários modos” (Geertz 1991: 10).


Classificar, hierarquizar, depende sempre do observador, depende de um conjunto de critérios que para além de não serem eternos sofrem alterações permanentes, pois trata-se de domínios instáveis – os antropólogos apercebem-se das dificuldades.



Bibliografia
BALANDIER, E. (1985) -"Le politique des Anthropologues" in Grawitz, M., Traité de Sciences Politiques, Tome I. Paris: Jean Leca, pp. 309-333.
BALANDIER, Georges (1999 [1992]) - O poder em Cena. Coimbra : Minerva.
BIARDEAU, Madeleine (1972) - L'Hindouisme - Anthropologie d'une Civilisation. Paris: Flammarion.
BOURDIEU, Pierre (1989) – “Sobre o poder simbólico”; “A representação política - Elementos para uma teoria do campo político”, in O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, pp. 7-16 e 163-207.
DUMONT, Louis (1992 [1966]) – Homo hierarchicus – O sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
GEERTZ, Clifford (1989 [1973]) – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara.
--------------------- (1992 [1980]) - Negara. O Estado Teatro do Século XIX. Lisboa: Difel.
GOMES DA SILVA, José Carlos (1994) – A Identidade Roubada – Ensaios de Antropologia Social. Lisboa: Gradiva.


[1] Apaixonante no sentido do gosto pronunciado que sinto pela política, pelo seu estudo.

[2] A cultura, para Geertz, fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar o que cada um efectivamente se torna. Com Geertz (1989: 64): “Tornar-se humano é tornar-se individual e nós nos tornamos individuais sob a direcção dos padrões culturais, sistemas de significação criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objectivo e direcção às nossas vidas”. Ou seja, a cultura é uma teia de significados. O olhar humano, através da «lente» da cultura percebe significados e estes significados são sempre distintos de uma para a outra sociedade. O que Geertz propõe é uma definição de cultura a partir da noção de homem, numa tentativa de resolver o paradoxo entra a ideia de uma imensa variedade cultural em contraste com a ideia de uma espécie humana única.
[3] O equivalente em simultâneo por cidade, capital Estado e reino. No seu sentido mais lato, Negara, designa civilização, alta cultura da cidade e sistema de autoridade política superior da cidade. No seu oposto, desa, significa com igual flexibilidade, campo, região, aldeia ou área governada, ou seja, desa define o mundo do povoado rural, do súbdito político: o povo. “Entre estes dois pólos, negara e desa, definidos por contraste mútuo, desenvolveu-se a formação política clássica, a qual, no contexto geral da cosmologia índica transplantada, assumiu a sua forma distintiva, para não dizer peculiar” (Geertz 1991: 14).
[4] Classificar a(s) sociedade(s) desta ou daquela maneira parece-nos completamente algo que soa a falso. Basta olharmos para o sistema complexa da sociedade indiana para nos darmos conta que estamos longe da simplicidade. "A reflexão de Louis Dumont sobre os temas da hierarquia e do poder exige ser discutida neste contexto geral. Assente na oposição puro/impuro, a hierarquia, tal como Dumont a apresenta a partir do sistema indiano das castas (jâti) e dos varnas, é definida como uma questão puramente religiosa. Deste ponto de vista, opõe-se ao poder - um poder laicizado (talvez no período védico segundo o autor)" (Gomes da Silva 1994:194-195). O ângulo pelo qual Dumont reflecte no homo hierarchicus sobre o puro/impuro é definido como uma questão puramente religiosa. "Colocados respectivamente, nos níveis superior e inferior da escala dos estatutos, brâmanes e intocáveis (puros/impuros) delimitam um espaço hierárquico que Dumont recusa conceber como uma «cadeia de poderes sobrepostos»" (ibid.: 195). O puro e o impuro é colocado por Dumont num sentido descendente e irreversível, ou seja, em «superiores-puros» e «inferiores-impuros». Esta questão levanta inúmeros problemas se atendermos aos dados etnográficos recolhidos por outros investigadores, tais com Gomes da Silva, Madeleine Biardeau, entre outros.

Fernando Baleiras