Nomenclaturas Integradores: os Cultos dos Arquitectos da Memória

«(…) a pista para a compreensão do nacionalismo incide na sua fraqueza, pelo menos tanto como na sua força. O cão que não ladrou forneceu a pista vital a Sherlock Holmes. A quantidade de nacionalismos potenciais que não ladraram é muitíssimo maior do que a daqueles que o fizeram, embora tenham sido estes que chamaram toda a nossa atenção.»
Ernest Gellener



1. As poucas expedições, os poucos exploradores e viajantes que tivemos nos trabalhos etnográficos e antropológicos obedeceram, em regra, a imperativos de ordem política e económica resultantes da exploração colonial. A máscara da presença teve um cunho de justificação científica. Sabemos que existem causas profundas na origem deste atraso. Provavelmente elas encontram-se nas características peculiares da nossa história, nas condições do nosso colonialismo do tipo paternalista-parasitário. Não esquecendo os aspectos retardadores que a Igreja impôs com a suas perseguições diligentes e implacáveis, marcando de maneira indelével, a cultura e a mentalidade dos portugueses.

A apregoada falta de vocação do português para a especulação teórica, para a investigação científica é uma maneira cómoda de remediar, de se resignar ao atraso. É como estivéssemos a falar de uma fatalidade biológica.


Esta situação provém de uma longa tradição, durante os longos anos do regime ditatorial (anterior ao 25 de Abril) nunca houve dificuldade em impor programas e métodos para se fazer o silêncio ou alimentar a indiferença. A antropologia acomodou-se no ambiente cultural de então, literário e clerical, estranho às correntes renovadoras, sofrendo uma débil ou quase nenhuma influência exterior, o que não surpreende dado que os locais de produção de saber (Universidades) estavam elas também manietadas pelo poder político, com algumas excepções, pois sempre houve professores a lutarem com teimosia pela mudança.

Os tentáculos que se estenderam mais parecem o pináculo das teorias darwianas da evolução, que em meados do século XIX, apelavam para a acção cega da «selecção natural» num processo que expurgava implacavelmente as formas de vida fraca – só os mais fortes sobreviviam, sendo por definição os mais aptos. Também os darwinistas do social argumentavam que o princípio da selecção natural funcionava no seio da sociedade – os mais ricos e poderosos eram assim os mais aptos e os mais merecedores. Isto não era mais do que uma procura para a justificação moral como apoio intelectual grotesco. Ateus e clérigos, professores, estudantes, cientistas e políticos comungavam desta homilia. O entorpecimento e os seus prolongamentos fixam-se durante muito tempo, Portugal suportou uma longa fase de ditadura, com pleno domínio da ideologia conservadora e católica.

Várias foram as prelecções e os cuidados atentos na construção de uma identidade nacional
[1]. Assiste-se a uma performance teatral em que os valores da «tradição» moldaram a vontade política manifestando-se com intensidade e persistência. "Com a implantação do Estado Novo, encontramos um conjunto de etnógrafos que, até cerca dos anos 50 do século XX (e mesmo mais tarde), identificando-se com as intenções do regime, ou pelo menos não as discutindo, sugerem uma imagem de unidade nacional e de uma certa portugalidade. (…) verdadeiras encenações oficiais em concurso, acontecimentos colectivos, paradas e desfiles, com evidentes objectivos de promoção turística e, sobretudo, ideológicos. Tratou-se de embelezar, cenografar, dramatizar e apresentar em tom de espectáculo «o que o povo faz». “ (…) Neste itinerário folclorista (…) o contributo dos etnógrafos locais na objectivação da «cultura popular», que tiveram franco florescimento durante o Estado Novo, construindo, (re)inventando e restituindo imagens, apropriações e representações da cultura local" (Raposo 1998: 199-203), advogavam uma orientação firme numa misantropia de ideais sublimes. O que nós assistimos é "a uma espécie de apropriação das formas de soluções populares, com algumas pretensões erudizantes, por parte de uma elite artístico-intelectual que se propõe restituir em performance teatral uma imagem dum «texto cultural» que poderá passar a ser seu também" (Ibid.: 214). Ou seja, o projecto político de conservar as culturas como se de espécies em vias de extensão se tratasse priva-as da sua vitalidade e aos indivíduos da sua liberdade.

2. As gerações de Garrett e Herculano experimentaram a duplo título uma episódica e problemática existência, o de portugueses e de liberais. O desafio, para os românticos, era conjugar a civilização com a especificidade cultural do País, desenterrando do amontoado de histórias, tradições, costumes e falas, um rosto capaz de se olhar a si próprio e de se afirmar no palco das nações. Também " (…) a prevalência de uma imagem positiva da cultura popular acusa ainda a proximidade do novo campo de estudos [etnográficos] relativamente à herança romântica. Admitida pelos próprios etnógrafos (…) Tal como os românticos, os etnógrafos portugueses dos anos 70/80 tendem de facto a ver o povo como uma espécie de avatar doméstico do "nobre selvagem" (Leal 1995: 128 cf. Cocchiara 1981: 172).

Os ciclos de criatividade da nossa antropologia desde do último quartel de oitocentos apontam um quadro argumentativo em que a galeria de notáveis
[2] articulam os seus interesses específicos pelos «costumes populares» com a causa etnográfica, revelaram-se personalidades actuantes e adaptadas ao contexto de então, contribuindo para o quadro de pensamento da nacionalização. Serão enaltecidos pela geração vindoura, na qual os percursos etnológicos introduzidos serão diferentes. Se os primeiros tinham uma tutela romântica (viam o povo num cenário rosado), os segundos com horizontes de referência científicos externos produziam na viragem para novecentos uma diferenciação, indo directamente ao encontro do povo tendo por consequência a experimentação de novos domínios do saber. O propósito de ir em demanda à procura do povo caracteriza a urgência etnográfica de recuperar atraso na reflexão sistemática a que estava votada a nossa disciplina.

Duas gerações tomam diferentes posturas na produção de conhecimento científico. Se aos primeiros está subjacente uma antropologia de gabinete, dado que se limitavam a fontes literárias e a informantes, já os segundos, servindo-se dos mesmos instrumentos, contudo, uma postura "com aspectos mais diversificados da vida popular observada directamente, os etnógrafos da viragem do século tiveram a sua primeira experiência com aquilo que hoje designaríamos de «povo real». É do impacto desta experiência que parece nascer em parte a mudança de olhar que então ocorre: confrontados com as pessoas reais por detrás dos textos, os etnógrafos constatam a distância existente entre a sua imagem ideal do povo e a realidade desse povo" (Leal 1995: 132). Neste contacto com o «real», constatam que, afinal o povo come, fornica, defeca, produz ruídos.


Vozes da geração pioneira e ecléctica se conjugam – Adolfo Coelho e Rocha Peixoto - veiculando "uma reflexão sobre a identidade nacional dominada pelo tema da decadência nacional e uma imagem negativizada da cultura popular e do povo" (Ibid.: 138). O clima que a tarefa urgente da informação etnográfica produz, exaltam os ânimos e desalentam as paixões. Com ironia desdenhadora, o texto que Rosa Peixoto "consagrou à arquitectura popular portuguesa [em que] o interior da casa é aí visto como o espelho do país e do povo (…) [mostra desalento, e descrença.] Nos seus textos sobre a «arte popular», as constantes referências à mediocridade artística do povo português [deixa transparecer que o povo já não é] visto como guardião de tesouros sobre os quais repousa a identidade mesma do país (…) agora é visto como afectado ele próprio pela decadência da nação" (Ibid.: 140).

No âmbito das Conferências de Casino (1871) o pensamento da geração intelectual de 70, reflecte-se, em todos eles por uma preocupação em comum: a procura de uma explicação para a nacionalidade portuguesa e as causas daquilo que consideravam ser a «decadência nacional». Todos os temas tratados se repercutiam neste sentimento da decadência da civilização e da cultura que se repercutia nas obras da inteligência europeísta, sobretudo na filosofia de Nietzsche ou mesmo nos romances de Oscar Wilde. O processo histórico do Liberalismo e a crise revolucionária dos homens da Geração 70 aumentavam as vozes longínquas que outrora falavam pelos «velhos do Restelo», pelos críticos da expansão, pela voz de Camões, autor da «austera, apagada e vil tristeza».

Portugal na última década de Novecentos, como se sabe, viu-se a braços com uma crise económica e política de grandes dimensões. O Ultimatum Inglês (1890) vem ferir o brio nacional, miguando consideravelmente as expectativas de Portugal como potência colonial. Neste contexto de crise afiguram-se as dificuldades sentidas pelos intelectuais portugueses no desenvolvimento e criatividade da Antropologia.

3. No vasto rol de figuras que deram o seu contributo na antropologia, a «figura tutelar» de Leite Vasconcelos é singular. Figura activa do conteúdo cultural, atravessa um período longo da vida portuguesa desaguando na vigência do regime (1910-1926). "La colossale enterprise de J. Leite Vasconcelos resta alors la seule pouvant être qualifiée de scientifique tandis que se multiplaient les recherches d'érudits, marquées à la fois par un atomisme thématique et un particularisme micro-régional et négligeant tout comparatisme" (Durand 1991: 124). Personalidade incólume, atravessando meio século de discurso, Leite de Vasconcelos, foi, talvez, o primeiro dos etnógrafos portugueses a sair do «gabinete». Forneceu e enriqueceu a abordagem etnográfica numa grande diversidade. A ele se deve a criação do Museu Etnográfico (1893), dando um rasto inconternável às gerações vindouras, que trilharam os seus propósitos. "Leite, (…) percorreu as aldeias e as serras, desenvolveu um técnica de abordar e interrogar as populações. Estas porém, não lhe mereciam confiança. Estavam corrompidas pela vida moderna" (Ramos 1994: 582). Esta atitude conservatore encaixa-se bem nos pressupostos ideológicos do regime. A autoridade leitiana é incontestável, a sua actividade ímpar granjeia adeptos. "Consciente de la nécessité de gérer de la production symbolique d'une image nationale correspondant à ses visées idéologiques, la dictature trouvait là aussi som compte" (Durand 1991: 124).

Também essa figura expoentória da antropologia portuguesa que foi Jorge Dias, se revelou tal como os seus precedentes pela procura das origens da cultura nacional. Embora no mesmo universo teórico dos seus procedentes irá ser influenciado pela antropologia cultural americana. Várias campanhas foram realizadas nessa altura nas ex-colónias portuguesas. O regime precisava de produzir mapas etnológicos sobre as populações nativas das colónias. Mas o tipo de antropologia que se fazia permaneceu com as suas ideologias de regime. Quando os homens do regime ditatorial sentiram a "necessidade de uma informação fidedigna, honesta e inteligente, sobre uma das zonas potencialmente mais explosivas dos territórios africanos [foi J. Dias o escolhido, isto porque era um homem comprometido com o poder, embora se lhe reconheça alguma independência. A sua obra defende que a antropologia se divide em física e cultural, evidenciado alguma incompreensão da teoria sociológica.] "Os Macondes de Moçambique é uma obra pouco feliz do ponto de vista antropológico, pois se revela que Jorge Dias nunca conseguiu ultrapassar as suas limitações teóricas de base (Cabral 1991: 34).

Assistimos a muitas divergências quanto à temática abordada por Dias. “ (…) da imagem comunitária e igualitária que Jorge Dias procurava inculcar [nos seus trabalhos sobre Vilarinho das Furnas e Rio d'Onor, transparece] sob uma espessa camada apologética, muito do gosto antiliberal da época, qualquer das monografias de Jorge Dias deixava claramente entrever profundas diferenças entre os aldeãos daquelas aldeias" (Villaverde Cabral 1985: 158). De facto, a antropologia portuguesa foi marcada por uma tendência vocacionada para o estudo da tradição camponesa. Como diz Durand (1991: 124) o "Ruralisme, vision fixiste des tradictions dans un passé idéalisé, mise en avant des productions artistiques au détriment des activités économiques, effacement des antogonismes sociaux furent les caractéristiques d'une ethnographie d'Etat qui obéissait à des critéries plus politiques que scientifiques".

4. Tipicamente ausente a concorrência, a candura convencional portuguesa na sua frescura atravessa vários domínios de autêntica rapsódia, um cruzamento com outras produções do regime daria como resultado provável a confirmação dos valores e estratagemas para a produção de uma memória nacional. Basta pensar no exemplo analisado por Pais de Brito (1982: 1-2) sobre o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa: "as condições essenciais [para a eleição da aldeia mais portuguesa teria que ser aquela que] maior resistência oferecia a decomposições e influências estranhas e o estado de conservação no mais elevado grau de pureza (…)". Este utensílio de controlo social mapeou e alargou as directrizes deste Estado-Nação. Diferentes valores falam entre si, o próprio movimento folclorista e etnológico durante o período salazarista encontra-se presente na pretensão do «orgulhosamente sós».


A apregoada decadência glosada pelas sucessivas elites intelectuais e políticas levadas até à caricatura refugiava-se em acusados ressentimentos nacionalistas. Estava implícita uma exacerbada ideologia. Como diz João Leal (1995: 141): "Sendo o povo o mesmo num e noutro caso, o que muda é a maneira como os intelectuais olham para o país e se servem do povo para nomear a sua relação com ele." A este respeito, e sublinhando a importância das recolhas realizadas indispensáveis para a tarefa dos quadros teóricos e metodológicos, o nível de comportamentos contraditórios e dialécticos, não deixaram de engendrar na antropologia uma entrada activa do povo no palco da ciência com argumentos próprios.

A nossa notável aptidão para arquivar e reencontrar recordações presta-se a um imenso desempenho social
[3]. A transmissão da memória dos grupos "exige que se reunam duas coisas (recordações e corpos) (…) A performatividade não pode ser pensada sem um conceito de hábito[4], este não pode ser pensado sem um a noção de automatismos corporais." (Connerton 1999: 4-5). O efeito líquido destes automatismos corporais explorados e arquitectados permitiram técnicas do poder que criaram os rótulos da permanência, do establishment cultural.


Os arquitectos políticos presumiam, aliás sabiam-no bem, que a maioria das pessoas eram analfabetas e ignorantes. Tomando decisões, classificando o poderoso «aparelho» a vencer a inércia, em suma a cilindrar o mais débil projecto de insurreição que pudesse haver. Estas máquinas estatuais desciam até à vila ou à aldeia retendo a mecânica integracionista e o controlo permanente do sistema fascizante, num fluxo contínuo de vários interesses organizados de mascates (vendedores ambulantes) do poder.


"O Estado Novo encorajava activamente a apatia política por parte dos indivíduos e proibia a formação de grupos políticos. (…) Todos os meios de comunicação estavam sobre controle governamental e sujeitos à censura. (…) Quase se podia usar como método prático, no Portugal de Salazar, o princípio de que «aquilo que não for expressamente autorizado é provavelmente proibido». Ou, então, se determinado acto não foi proibido, provavelmente será preciso uma licença para o praticar" (Riegelhaupt 1979: 517-518).

5. "O objectivo dos antropólogos não era descobrir como os hábitos servem as necessidades (biológicas) do indivíduo, mas compreender como as estruturas sociais persistem através do tempo. (…) A «função» de uma tal instituição era formalmente definida como papel que representava na manutenção do sistema como um todo (…)" (Leach 1989: 31). Um gato não é um coelho em lugar nenhum, mas ambos exibem características comuns. O mundo «real» está rodeado de imaginário, habitado por deuses e sobre-humanos. Todas as culturas inventam artifícios retóricos da produção memória, os seus próprios mitos e as suas metáforas. O futuro é fluido e não congelado, construído pelas nossas decisões diárias inconstantes e mutáveis, cada momento influencia todos os outros. "Os seres humanos procuram desde sempre conhecer e dominar o acaso, tirando partido dele – reconhecendo padrões de ordem nas estrelas, no vôo das aves, nas entranhas dos animais ou nas linhas e nos sinais do seu próprio corpo" (Nunes 1999: 282).

O impressionante discurso nacionalista (o discurso da salvação) oferece, se quisermos, uma saga que assume feições de um trajecto iniciático. Enquanto doutrina, este discurso é feito por três etapas: no plano temporal, estabelecendo numa sequência justaposta, um passado mítico (virgem e robusto, não corrompido pela «modernidade»), um presente (de sacrifício, de luta contra o mal) e a fixidez de um futuro imutável, utópico. Em suma, a tarefa era reedificar todo o tecido social. Nesta complementaridade que se estabelece entre o passado e o futuro míticos do discurso nacionalista, a finalidade era proporcionar um quadro vastíssimo para todo o comportamento a reter, procurar captar – um não-tempo. O nacionalismo perspectiva o sentido dos comportamentos, segundo uma escatologia que reclama inventar de acordo com uma ordem finalizada, em que o conjunto de relações simbólicas deste sistema «mágico-religioso» tem como finalidade única a colectividade mítica da chamada «nação».

Os alicerces de todo o pensamento sociológico radicam neste balizar, do que está antes e do que está depois. A evocação de faustos passados está condenada a cobrir de espuma retórica o dogma místico de folclores embevecidos e nostálgicos, de falaciosas sobrevivências prenhes de crença. A fixidez, só faz sentido, para os cultos que a Igreja professa, impondo uma visão idílica, acreditando na providência, na tranquilidade, da mediocridade passiva dos quadros do regime. A existência de um povo, ordenado, passivo só existe no aparato cenográfico clerical.

O zelo pelas heresias que a religião queria controlar, curiosamente, eram fruto, elas mesmas, do aspecto utilitário de diversas culturas pagãs. A Igreja procurou desde sempre condenar a magia, não por quimérica, mas por ímpia. Entre a atitude religiosa e a mágica sempre houve antinomia. Mas o culto das relíquias, as medalhas pias e muitas das invocações à divindade constituem um traço de união entre a religião e o ocultismo. A religião absorveu práticas de diversos cultos pagãos A necessidade de encontrar um modus vivendi opera nos limites do poder, numa encenação, que implica acção, é um esforço na elaboração de representações. O poder como segredo reforça e assegura a inventividade. Garantem a comunicação nos actores sociais animados pela imaginação.

Se olharmos para o texto Tesouros: passado, presente e o risco da desordem de que nos fala Pais de Brito (1992: 337-359), a «magia» serve muitas vezes para reparar as fronteiras morais da comunidade como se vê pelos casos das «represálias mágicas» férteis nalgumas sociedades. Lobisomens e almas penadas constituem um verdadeiro sistema de punição, destinado a castigar os que em vida se comportaram como gente má e que defraudaram moralmente alguém. Juntamente com estas práticas, sociedades como as mencionadas por Pais de Brito,
[5] souberam criar mecanismos destinados a assegurar o bom funcionamento comunitário e a prevenir situações de violência. Da arbitragem de conflitos à aplicação de sanções, são múltiplas as funções. A elaboração de formas autónomas de regulação de tensões chega a desempenhar funções judiciais. Arredados, muitas as mais das vezes, de qualquer riqueza, encontra nesta virtualidade um impressionante universo de manifestações de individualidade anunciada em nome de uma predestinação por vezes obsessiva no imaginário social das suas sensibilidades. Esta situação veicula uma dupla articulação, movediça por natureza. "Nesta imbricação de representações, palavras e actos, descobrem-se nos tesouros e histórias que os envolvem projecções de ideias sobre o presente, o passado e o futuro e que no contexto aldeão, parecem constituir-se em lugar de tensão e conflito oculto que opõe os indivíduos entre si (…) institui valores e marca as condições da reprodução social" (Ibid.: 337).

Somos sempre confrontados com a articulação consciente/inconsciente por meio de um processo em que as fronteiras por muito que queiram justificá-las nos limitam o saber. O mundo da lenda não se reconcilia com os determinismos dos dados físicos em si mesmos. A caracterização da ciência é a sua impertinência e a sua curiosidade de procurar o lado escondido do jogo. "O reconhecimento da transcendência do pensamento face à sensação, aos sentimentos, às impressões, às percepções, tem uma importância fundamental. Ele permite ver que o homem só pode elaborar o seu pensamento se criar esses espantosos mediadores simbólicos que asseguram simultaneamente a troca entre os parceiros sociais e a passagem do mundo onde se sente para o mundo onde se concebe; do mundo sentido para o mundo vivido" (Hatzfeld 1993: 50).



A mudança para a diversidade


6. Nenhum avanço do pensamento seria possível se nos contentássemos com o que foi transmitido. As informações disponíveis parecem-nos insuficientes. Assim servimo-nos delas para tentar produzir outras. Através de esforços procuramos ampliar os miasmas protagonizados, sabendo que a leitura dos textos doutros autores teve particulares sonoridades tendo em conta o contexto dos momentos em que foram concebidos.

Já o dissemos, por outras palavras, dos interesses de subordinação que comportam os materiais etnográficos e na tónica posta na retoma nacionalista. Novas gerações de antropólogos protagonizaram e protagonizam, à luz da diversidade novos objectos de análise e experiências no terreno. Para além da "diversité inhérente au genre, montre le foisonnement actuel des centres d'intérête: à toute la varieté des études empiriques sur des thémes ruraux et de quelques terrains exotiquiques s'ajoutent des recherches urbaines ou sur des communautés de pêcheurs. Le domaine du symbolique et les préocupations de cognitive ou gender anthropology prennent une place importante tandis que réflexions épistémologiques ne sont pas absentes" (Durand 1991: 129)
[6]. Novos desafios têm sido propostos aos antropólogos que procuram participar de igual para igual na produção científica internacional não hesitando em confrontações que ultrapassam práticas agenciadas.

Foi neste cenário que começaram a proliferar novos campos analíticos, a ser demonstrado com êxito a impossibilidade de se separar a mente do corpo. O dualismo entre mente e corpo da ortodoxia sociológica cai por terra. A nossa mente nada é sem a nossa corpalidade, não há mentes sem corpo. O ser humano é uma identidade única, um fluxo permanente e em permanente fluir no mundo.

Os sinais de mudança foram profundos e têm se multiplicado, um deles foi sobre o estudo do pensamento masculino sobre o género, tornou-se mais diversificado e iluminou muitas e inesperadas complexidades e contradições. «As grandes mudanças que se verificaram com a sociedade moderna no campo da sexualidade e dos géneros foram igualmente mudanças na interpretação do corpo, do sexo, da reprodução, da identidade individual das emoções. Foram, sobretudo, resultado da laicização e substituição da religião pela ciência como modelo interpretativo e explicativo do mundo e da sociedade» (Almeida 1995: 73). A imergência de uma novo olhar impunha-se, todo este questionamento teve influência a nível cultural e das práticas discursivas e que transparecem na alteração de comportamentos que se vão verificando.

O homem, categoria naturalizada durante séculos, viu-se questionado na sua posição de forma nunca antes vista. O ponto de vista bíblico, que providenciou a narrativa por excelência, dentro da qual a vida dos indivíduos estava ordenada e tinha significado, começa a ser ultrapassado, atingido, abalado, ao mesmo tempo por acção de forças internas e externas. Os estudiosos da bíblia começaram a questionar a origem e composição do texto e sugeriram que, apesar da palavra de Deus ter sido transmitida directamente a Moisés, foi composta de fragmentos de diferentes proveniências. Por outro lado, descobertas de ancestrais culturas sofisticadas e letradas, desafiaram a visão bíblica da antiga sociedade e, especialmente um número de paralelos para as histórias da Génesis começaram a surgir o que fez com que a qualidade da Bíblia, como única, fosse severamente indeterminada.

Ao idealismo e ao profetismo na mistificação e descorporização do corpo, e num virtuosismo técnico, o modelo deliberadamente protagonizado em determinados contextos institucionais, revelam que "o exercício do poder sobre os indivíduos se transformou através da disciplina e da docilização dos corpos (…) (Cunha 1996: 72 cf. Foucault 1975). Há pouca sensibilidade votada no passado pelas instituições, nas ciências sociais encontramos uma (re)descoberta de temáticas, nomeadamente com o trabalho de Manuela Cunha (1996: 72-86). O seu texto Corpo Recluído – controlo e resistência numa prisão feminina, nos dá conta do prolongamento e da aplicação do modelo escolhido para o encarceramento.

O princípio do século XIX parece ter sido de facto a época dos grandes encarceramentos - o tempo em que os criminosos eram apanhados e concentrados em prisões, os doentes mentais eram apanhados e concentrados em «manicómios» e as crianças eram apanhadas e concentradas em escolas. Esta inquietante postura mudara em muitos países. Mas no caso português, maquinismos políticos e ideológicos fizeram a escolha de ajustamento aos seus ideários. A escolha do modelo de reclusamento regeu-se pela aplicabilidade da preservação da ignorância, da abusividade socio-pedagógica repressiva. Esta abusividade regeu-se por critérios incrementais de continuidades sacro-conservadoras, fomentadoras de patologias sociais. "Aquando da abertura do estabelecimento [Prisional de Tires], em meados da década de 50 do século passado, vigorava um modelo de «tratamento» penitenciário de mulheres que permaneceu alheio à deriva terapêutica registada noutros países" (Cunha 1996: 74). As novas tendências de enclausuramento, entretanto seguidas noutros países, em que as reclusas são vistas como pessoas com problemas físicos e psíquicos e consequentemente carentes de ajuda médica e psiquiátrica, não foi o escolhido, pois o seguido pelas hostes portuguesas do Estado Novo foi o que tinha como tónica principal a recuperação "moral, através da exortação religiosa, da disciplina, da austeridade monacal e da inculcação de industriosos hábitos domésticos. [Pretendiam assim controlar e reconduzir] (…) as desviantes à normalidade (…) à imagem considerada apropriada para o seu género e cujos ingredientes eram o recato, o pudor, a sobriedade" (Ibid.: 74).

No mundo exterior a fronteira entre o domínio público e o privado está bem demarcada. "Na verdade, os modos de vida na prisão – e em grande parte das instituições "totais" - vêm mostrar de forma mais enfática o elo existente entre um sentido individuado do eu e o corpo" (Ibid.: 72). Inevitavelmente podemos verificar que, mais uma vez, o poder vigente instrumentaliza a teia social, estamos a falar de uma prisão implantada nos anos 50, o que foi feito para inverter esta situação? A negatividade com a consequente desumanização e infantilização dos modos sócio-pedagógicos apresentados no texto de Manuela Cunha sobre a prisão de Tires apresenta-nos a continuidade de patologias sociais herdadas, bizarramente acarinhadas, criadoras de ambientes anti-solidários, conflituosos, e tal como o texto nos aponta, geradores de uma reabilitação social pela negativa, aliás, neste contexto, reabilitação é uma palavra sem sentido, a palavra mais correcta seria institucionalização.

A emergência do papel dos cientistas sociais impõe-se. O discurso não pode ficar pela contemplatividade do tecido social. Durand (1991: 30) aponta que este tipo de estudos influencia os investigadores na procura de discursos, sendo estes "plus mais polémiques que scientifiques". Não vejo porque razão a polémica não possa ser instalada no discurso científico. Terá o papel do antropólogo que permanecer na observação e classificação dos fenómenos? Numa sociedade que tende para a globalização, a denúncia das continuidades não justificadas, inaladoras de patologias, devem ser denunciadas e procuradas respostas para os ambientes pouco solidários que conservam moldes idealistas semeados de desfigurações. Não poderá a observação sobre fenómenos no tecido social contribuir para um discurso mais incisivo e denunciador de manifestações conservatore?

Para não fugir à temática o processo de construção da identidade é algo indissociável da elaboração de memórias. Toda a cartilha positivista se preocupava com as fontes a manipular. Miguel Vale de Almeida, no seu ensaio (ao livro da 3ª classe[7]) Leitura de Um Livro de Leitura: a sociedade contada às crianças e lembrada ao povo, nos dá conta da "montagem da aparelhagem conceptual com que a sociedade governa a reprodução – física e social. (…) este texto [que o regime político produziu] como um todo orgânico, cujos elementos componentes, os diferentes textos e ilustrações, remetem para um corpo central de significados e conjunto de mensagens veiculadas" (Almeida 1991: 247). A elaboração de marketing aqui lavrada remete-nos par um elevado grau manipulatório do regime (1926-1974), num todo coerente discurso que está em perfeita apoteose com a ideologia advogada. “ (…) o Livro de Leitura constituía um manual de regras da vida social e um esquema totalizante de uma certa visão do mundo. (…) propõe um modelo de sociedade, um modelo de comportamentos, (…) construídos peça a peça (…) Funcionando através do artificio retórico das homologias (…) que agem segundo critérios de comportamento que, em ultima instância, se encontram legitimados no divino, essa metáfora por excelência do social" (Ibid.: 260-261).

Algumas notas
As camas do nacionalismo estão sentadas a uma mesa improvisada,
Em que o rosto de um homem, irado, espreita
Através de buracos com ilhas de sentimentos
Em que já não é possível fazer conter carapaças porosas.

Fernando Rodrigues

7. Recebemos cerca de dez mil impressões sensoriais por segundo, que devem ser filtradas, se pensarmos que cada pessoa tem o seu próprio «sistema», a ingenuidade de que existe uma só realidade comum a todos é uma mera metáfora das suas facetas, da sua actividade. Há todo um elenco que inclui as próprias personalidades criadoras das obras que reflectem ou não o mundo físico-social dos seus autores.

A questão da identidade perpetuou um desvio teórico, histórico e metodológico, na obtenção e aceitação das alteridades do saber. Os exageros nacionalistas tiveram o seu epicentro como se sabe na ideologia nazi em que para sempre o problema da identidade preenche um vazio deixado. Ele está fragmentado mas não está inexistente. Se me pedirem uma definição de identidade terei dificuldade no labirinto dessa metáfora em determinar o conceito que ela produz. O seu carácter polissémico e as conotações que suscita não se ficam por dificuldades linguísticas, ela implica exacerbadas implicações ideológicas a que os antropólogos não se conseguiram subtrair.

Fascismo, Hitler, Holocausto, Dilúvio, Bíblia, Alá, são vocábulos que sistematicamente se encontram nas reflexões contemporâneas e que não vou tentar escamotear. Termos vagos que têm a força que têm e que são preenchidos pela experiência pessoal. Muitas são as notas e os acordes emocionais que a humanidade exibe no seu etnonacionalismo "Geralmente, a ideologia nacionalista sofre de uma falsa consciência generalizada. Os mitos invertem a realidade: diz defender a cultura popular, quando está, de facto, a forjar uma cultura erudita; alega proteger uma sociedade popular antiga, quando na realidade, ajuda a construir uma sociedade massificada anónima" (Gellner 1993: 183).




Bibliografia
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VILLAVERDE CABRAL, Manuel, “Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna”, in Análise Social, Vol. XXI (85), 1985-1º, pp. 157-162.


[1] Esta questão é amplamente discutida e analisada no primeiro número de Cadernos de Língua e Cultura Portuguesas, cuja temática tratada por José M. Amado Mendes (1999) intitula-se, A Identidade Portuguesa: Perspectiva Histórica.
[2] Teófilo Braga (1843-1924), Francisco Adolfo Coelho (1847-1919), Consiglieri Pedroso (1851-1910), J. Leite Vasconcelos (1858-1941), António Augusto Rocha Peixoto (1866-1909).
[3] "A memória social parece estar efectivamente sujeita à lei da oferta e da procura: há que fornecer memórias; as memórias devem surgir em pontos específicos. Mas para sobreviverem para além do imediato e, especialmente, para sobreviverem na transmissão da troca, têm que responder a uma procura. Uma tradição sobrevive numa versão ecotípica porque, para o grupo que a recorda, apenas esta versão parece adequada" (Fentress e Wickham 1992: 243).
[4] Paul Connerton destingue três tipos distintos de memória: em primeiro lugar uma memória pessoal, um segundo tipo de memórias – as memórias cognitivas. E um terceiro tipo de memória que se prende com a capacidade de reproduzir uma determinada acção – a memória-hábito.
[5] O Norte de Portugal e a Galiza, zonas onde, até aos nosso dias, os tesouros ocultos participam intensamente no imaginário dos grupos e continuam, no espaço social da aldeia (…) (Pais de Brito 1992: 337).
[7] Como refere o autor, o livro utilizado no seu ensaio é o Livro de Leitura da Terceira Classe: Ministério de Educação Nacional, Porto Editora, 1958, 4ª edição.

Índia – Alvo de Imperativos Categóricos do Nosso Olhar

«A aventura da descoberta de uma imagem outra termina invariavelmente na ilusão de uma redescoberta de nós próprios.»
José Gomes Carlos da Silva


Prólogo
O conhecimento que temos da sociedade indiana a maior parte das vezes cinge-se a uma visão clássica, em que o modelo hierárquico continua a modelar. Mesmo sabendo da existência de configurações diferentes a que Louis Dumont[1] tratou como de somenos importância, «marginais», continua-se a omitir circunstâncias, dados etnográficos como se eles não existissem. Se queremos dar conta da realidade, não podemos pegar na realidade dos factos e adaptá-los aos nossos pressupostos.

De que critérios dispomos nós para aferir da validade, da pertinência, e do carácter explicativo de uma obra em geral? Qualquer texto é passível de várias leituras e sabemos que é lugar-comum aceitar os trabalhos dos clássicos, tidos como algo de intocável. Que meios temos ao nosso alcance para encetar uma leitura atenta? Sabemos apenas que nunca será através de um contacto passivo e acrítico.

Em Durkheim, a abordagem das sociedades primitivas faz-se através do encontro com o inverso das sociedades ocidentais, a que chama modernas. Encontramos na base de teoria durkheimiana a oposição radical entre primitivo e moderno, classificar é a palavra de ordem, mas não basta, surge a necessidade de juntar, de agrupar, de estabelecer relações entre elas, sejam elas relações de causalidade ou de subordinação hierárquica. Com Dumont apesar da abordagem ser algo distinta, o percurso é semelhante. Para Dumont no Homo hierarchicus, a leitura que fazemos é esta: existe à face da terra vários homens, na Índia o que existe é o Homo hierarchicus, o homem de todas as culturas do mundo, excepto o homem que somos nós, os Ocidentais.


DESENVOLVIMENTO DA TEMÁTICA
Para aceder a um nível de compreensão mais satisfatório «deveremos» articular o que ficou lá atrás com o que vamos apreendendo e seguindo, as dúvidas, as reflexões e as polémicas dos primeiros contactos no descobrimento do chamado Mundus Novus – abriram definitivamente as portas da até então meditativa Europa e colocaram-na frente à infinita variedade de culturas e sociedades da humanidade inteira.


Nos primeiros momentos, a alteridade destas sociedades, revelam-se no seu aspecto pitoresco - o mais imediatamente visível. Uma busca de formas diferentes de sociabilidade desloca continuamente ilustrações variadas. Os viajantes começam a publicar as suas observações e alguns, inclusive, dedicam-se a escrever compilações das mesmas. Certos circuitos da informação e da convivialidade desenham um percurso de aventura voraz, onde o deleite dos sentidos era alimentado pelo recheio de gabinetes abarrotados de curiosidades. Aparecem conceitos e problemáticas que acompanharão o curso e as atribulações da etnologia. "Eles julgaram possível contemplarem-se através do olhar de uma outra sociedade. […] os Ocidentais quiseram dar uma aparência de verosimilhança ao diálogo com o Outro" (Gomes da Silva, 1990: 40). Olhar não era de todo um acto pacífico, as populações observadas não compartilhavam dos mesmos usos e costumes que o observador europeu, e dada a inexistência de vocabulário os outros eram designados por termos classificatórios, sempre como lugar-comum, a inferioridade cultural ou mental.

É lugar-comum os manuais de história mencionarem que Portugal orgulha-se de ser o país mais antigo da Europa, conseguindo manter a sua autonomia com a consequente união política, linguística e cultural. E o povo privilegiado entre todas as nações cristãs e eleito para uma missão histórica. Neste ambiente e com o culminar do descobrimento marítimo para a Índia tomou um carácter sagrado que servia um imperialismo religioso e político. "Quando os portugueses descobrem a Índia, olham-na através do sistema de referências simbólicas elaborado no Ocidente" (ibid.: 36).

A polissemia da antropologia toma um discurso em que a plasticidade se adapta a qualquer registo metafórico. Procura-se o ajustamento para a eficácia construída que aspira a uma inteligibilidade mutatis mutandis.


"O viajante ocidental é um «tradutor». O seu principal labor consiste, muitas vezes, em verter uma realidade nova nos termos da que lhe é familiar. […] Mas é forçoso admitir que muitos dos elementos que nos são transmitidos nos informam sobre o quadro mental dos observadores, mais do que sobre a realidade descrita" (ibid.: 37-38). A invenção destaca, posições, elaborações que se pauteiam como repertórios stand, genótipos em que convergem para as mesmas formulações, obedecendo quase sempre aos operadores das estratégias «incubadoras» e intencionais.

A procura de imagens credíveis não se deve tão-somente às marcas dos painéis culturais dos próprios intervenientes, está implícito que o Ocidente tem «necessidade» desses créditos e por isso debruça-se nessa novas realidades completamente distintas dos quadros mentais ocidentais. Mas nestes quadros estão presentes a opressão, a superstição – os medos religiosos. É como se disséssemos: se a realidade que temos aos nossos olhos não corresponde às expectativas, então, temos que a mudar, colocá-la em sintonia com aquilo que pretendemos fazer ver. Este encontro com a diferença faz-nos lembrar o percurso durkheimiano. A sociologia francesa, pelas mãos de Durkheim e Mauss, contem esta busca incessante de trajectos fictícios, dissimulados, do conhecimento de si próprios, através do outro. A reflexão, ou melhor, toda a especulação durkheimiana assenta num conjunto de «constatações» em que as semelhanças são interpretadas como funestas, desprovidas de qualquer organização, em que uma aparência de elaboração científica perpetua uma completa ignorância pelo objecto, pelos factos, utilizando um quadro irrelevante, um quadro de incoerências de análise dos dados fornecidos - o ponto de partida é o ponto de chegada.

O interesse no estudo de outras sociedades, revelou-se ser em grande parte o interesse pela origens, convidando-nos a ter um olhar pouco claro e negativizado das sociedades não ocidentais, tendo como único fim, justificar as suas auto-referências. A realidade etnográfica não é aquilo que nós queríamos que ela fosse. Transparece no texto de Dumont uma apropriação dos factos etnográficos da sociedade indiana para justificar a suas auto-referências. A ideia de classificação, de hierarquização, em que (A) não se pode sobrepor a (B) é absolutamente problemática. E este é que é o pequeno grande problema. Que «fronteira é esta? A vulnerabilidade do pensamento de Dumont é a dificuldade que ele tem de pensar duas realidades distintas. É desta forma que nos deparamos com a questão da classificação da morfologia social e do indivíduo no desempenho do seu papel na produção e reprodução dos actos sociais. Quando Durkheim (1969: 399) diz: "Toute classification implique un ordre, hiérarchique dont ni le monde sensible ni notre conscience ne nous offrent le modèle", a lógica é sempre uma comparação de hierarquia em que as sociedades vão avançando - isto é nitidamente um modelo evolucionista.

Apesar da abordagem utilizada por Louis Dumont ser algo distinta da abordagem de Durkheim e Mauss, encontramos o mesmo desfasamento entre a teoria e a realidade: não é a teoria que se adapta à realidade (ou à sociedade), mas antes a realidade etnográfica, que é tratada para obedecer à teoria. De um lado estão os holistas, os Outros (sociedade onde os actores sociais se fundem no todo do grupo), do outro lado, as sociedades modernas, sociedade onde os actores sociais (indivíduos) são individualistas.

À semelhança dos seus «inspiradores», Dumont, no homo hierarchicus utiliza várias dicotomias que pretende contrastantes. A noção de hierarquia em Dumont não se pactua apenas à morfologia social em si própria, ela refere-se também aos valores, às ideias pré-concebidas no intuito de reter a dicotomia individualismo/holismo. O que Dumont faz é confrontar os conceitos de primitivo e moderno, onde a classificação e a hierarquização dos grupos estão carregadas de pressupostos à boa maneira durkheimiana. Mas outras dicotomias no texto dumontiano o atravessam, a perspectiva dele está longe de ser benéfica, elegendo à maneira durkheimiana uma divisão radical, numa hierarquia rigorosa – igualitarismo/hierarquia e puro/impuro. Querendo, a grande questão de Dumont é a de que o homem é hierarquizado. Encontramos no texto de Louis Dumont este propósito auto-referencial, em que o que está em jogo é a construção teórica (com evidente desprezo pelos dados etnográficos) do Ocidente. E esta é uma das grandes vulnerabilidades no pensamento dumontiano. Como podemos ver nesta parágrafo Dumont adoptou uma espécie de visão funcionalista, procurando fixar o b, a, ba, da cartilha sociológica.

Para toda uma série de autores (Dumont, Bouglé, etc.), a ideia de divisão rigorosa entre as castas é reforçar as unidades que se repudiam. Significa isto que a casta é um grupo de indivíduos que mantêm entre si uma aproximação exagerada, sendo que o contacto com o exterior seria poluente.


É nas castas que a problemática da hierarquia encontra o seu epicentro, o homo hierarchicus ao longo do texto procura sistematizar através dos dados etnográficos aludidos, esta questão - a das castas. Só que situações de carácter etnográfico que trazemos aqui como exemplo relativizam as perspectivas de Dumont. “ […] no sistema de castas, é relativamente inquestionável a posição dos brâmanes e dos intocáveis. Na zona média do sistema, cada grupo social produz «argumentos» que pretendem provar a superioridade do seu próprio estatuto. O discurso das diferentes castas e os argumentos produzidos cruzam-se numa rede complexa de oposições, num jogo incessante de identidades relativas. Não existem, aqui, quadros definitivos, nem posições estáveis. De aldeia para aldeia, de região para região, vemos alterar-se a morfologia social: os grupos em presença raramente são os mesmos, modificando-se, portanto, as relações e os critérios que permitem codificar as diferenças” (Gomes da Silva 1990: 94-95).

Quando falamos em hierarquia em Dumont trata-se de uma construção de divisões, unidades auto-contidas em coisas estanques. O sistema de castas, tal como é definido por Dumont, " […] divide o conjunto da sociedade num grande número de grupos hereditários distintos e ligados por três caracteres: separação em matéria de casamento e de contrato directo ou indirecto (alimento); divisão do trabalho, tendo cada um desses grupos uma profissão tradicional ou teórica, não podendo os seus membros se afastar dentro de certos limites; finalmente hierarquia, que ordena os grupos em posições relativamente superiores e inferiores umas às outras” (1992: 69). Segundo Dumont, a casta é assim um sistema a partir do qual devem ser estudados os seus elementos componentes a partir da noção de unificação. Mas esta unificação é feita no exterior, os diferentes níveis encontram-se no seu interior subdivididos, pois, é preciso considerar segundo o autor do homo hierarchicus, que " […] mais do que um "grupo" no sentido comum, a casta é um estado de espírito, um estado de espírito que se traduz pela emergência, em diversas situações, de grupos de diversas ordens a que se dá geralmente o nome de "castas". Eis porque não se deve ver o conjunto a partir da noção de "elemento", segundo a qual se conheceriam pelo nome e pela natureza os "elementos" constituintes, mas a partir da noção de "sistema", segundo a qual alguns princípios fixos presidem ao agenciamento de "elementos" fluidos e flutuantes" (ibid.: 84).


Vimos que para Dumont o sistema de castas, é um sistema de valores, formal, racional, é uma ideologia, um sistema intelectual que procura apreender através da noção de hierarquia, mas sentimos as suas dificuldades.

Logo no início do seu texto, ao lermos o prefácio do Homo hierarchicus de Dumont, deparámo-nos com uma defesa, que sublinha necessariamente as dificuldades da sua tese. Quando o autor menciona La Pensée sauvage, de Lévi-Strauss, pp.144-177, trazendo à cena que se deve "lembrar que Lévi-Strauss pôde comparar subtilmente «totem e casta» sem pensar na hierarquia em nenhum momento", o que encontramos é uma atitude de ampliação ideológica que procura ambiguamente diagnosticar, fazendo referência a trabalhos de outros autores, que tomamos como uma forma de suavizar os seus pressupostos.

A visão de Dumont é uma visão tradicional sobre a Índia, tem um ponto de vista conformista, que vai de encontro ao senso comum ocidental. É um ponto de vista que lamentavelmente se condena a si próprio. O malogro é que o «observador» o que faz é destinguir, mais do que aproximar as diferentes castas. Hierarquiza-as e define-as sobre critérios manifestamente subjectivos.
O texto de Dumont é uma ideologia, um sistema intelectual que procura fazer apreensões através da noção hierarquia. Quando diz que " […] a partir de nossa opinião corrente sobre a hierarquia, fazemos em primeiro ligar para nós a representação do sistema das castas, ou de um conjunto de castas determinado, como uma ordem linear que vai das mais alta à mais baixa - uma ordem transitiva e não cíclica: cada casta é inferior àquelas que a precedem e superior àquelas que a seguem, e todas estão compreendidas entre dois pontos extremos. [No entanto], […] na região mediana em particular, é frequentemente difícil classificar absolutamente duas castas, determinadas uma em relação à outra […] se considerar-mos os princípios que servem para classificar mais ou menos perfeitamente as castas numa ordem. Encontramos, assim, subjacente a essa ordem, um sistema de oposições, uma estrutura” (Dumont 1992: 90).

É-nos perfeitamente visível a dificuldade que Dumont tem em classificar duas castas. Perante tal dificuldade utiliza a perspectiva hierarquia analisando o sistema de castas através daquilo que acha ser " […] um único e verdadeiro princípio, a saber, a oposição do puro e do impuro. Essa oposição subentende a hierarquia, que é a superioridade do puro sobre o impuro; ela subentende a divisão do trabalho, porque as ocupações puras e impuras devem do mesmo modo serem mantidas separadas. O conjunto está fundado na coexistência necessária e hierarquizada de dois opostos” (ibid.: 94). Como vêem neste exemplo a lógica é sempre uma comparação de hierarquia. Classificar a(s) sociedade(s) desta ou daquela maneira parece-nos completamente algo que soa a falso. Basta olharmos para o sistema complexa da sociedade indiana para nos darmos conta que estamos longe da simplicidade. "A reflexão de Louis Dumont sobre os temas da hierarquia e do poder exige ser discutida neste contexto geral. Assente na oposição puro/impuro, a hierarquia, tal como Dumont a apresenta a partir do sistema indiano das castas (jâti) e dos varnas, é definida como uma questão puramente religiosa. Deste ponto de vista, opõe-se ao poder - um poder laicizado (talvez no período védico segundo o autor)" (Gomes da Silva 1994:194-195). O ângulo pelo qual Dumont reflecte no homo hierarchicus sobre o puro/impuro é definida como uma questão puramente religiosa. "Colocados respectivamente, nos níveis superior e inferior da escala dos estatutos, brâmanes e intocáveis (puros/impuros) delimitam um espaço hierárquico que Dumont recusa conceber como uma «cadeia de poderes sobrepostos»" (ibid.: 195). O puro e o impuro são colocados por Dumont num sentido descendente e irreversível, ou seja, em «superiores-puros» e «inferiores-impuros». Esta questão levanta inúmeros problemas se atendermos aos dados etnográficos recolhidos por outros investigadores, tais com Gomes da Silva, Rosa Perez e Madeleine Biardeau.

"Tem sido sobejamente referido o carácter bramanocêntrico da observação antropológica sobre o sistema de castas na Índia […] Quer isto dizer […] que se cristalizou a ideia de que, à medida que se "desce" na hierarquia, o sistema tende para uma espécie de minimalização dos caracteres que identificam o "topo" (Perez in Corpo Presente 1996: 48). Parece haver aqui uma «inversão» no sentido em que " […] nem sempre são os grupos «inferiores» que parecem reivindicar o estatuto dos grupos «superiores» […] Em Orissa, quando o rei de Puri intervém no ritual da renovação que é o ratha yâtrâ, é obrigado a varrer cerimonialmente o chão das viaturas que abrigam provisoriamente as divindades do grande templo: como se sublinha de bom grado em Puri, o rei comporta-se nessa altura como um verdadeiro intocável. O que se deve reter desses exemplos é que no termo do ciclo, quando a sociedade atinge o paroxismo da crise, urge assegurar uma recuperação de vitalidade que só os indivíduos ou os grupos de «baixo» estatuto parecem capazes de proporcionar. Vemos confirmar-se, assim, a necessidade de uma relação de dependência recíproca, […] o «alto» e o «baixo», o «puro» e o «impuro», repudiam-se na mesma medida em que se atraem" (Gomes da Silva 1994: 194).


Também para Rosa Maria Perez, dificilmente existe uma lógica gradativa e acomodada da linearidade de Dumont, citando-se a si própria[2], nos diz que " […] os intocáveis Vankar[3] consideram-se contaminados por castas consideradas estatuariamente superiores: […] a parteira Vankar sente-se mais poluída quando partilha a grande poluição decorrente dos partos de mulheres de castas não intocáveis do que quando trata de mulheres da sua casta. No primeiro caso exige um sari novo para substituir o seu, que queima; no segundo, limita-se a lavar a roupa que de novo usará" (Perez in Corpo Presente 1996: 51). No essencial, os intocáveis são uma peça fundamental na sociologia da Índia, nos mecanismos esclarecedores da Índia, ao contrário de Dumont, em que para ele falar da Índia era falar dos Brâmanes.

A dita pureza, para assegurar a sua «manutenção» necessita do desempenho da impureza e Dumont não tem como contradizer esta complementaridade entre puro e impuro, aliás, nas tarefas repositoras " […] a divisão do trabalho religioso e a atribuição permanente a certas profissões de um certo nível de impureza caminham paralelamente no quadro de oposição puro/impuro” (Dumont 1992: 99-100). Parecem manifestamente visíveis as dificuldades de sustentação da tese dumontiana. Dumont apercebe-se das suas dificuldades classificatórias, não é simples classificar as castas através de uma hierarquia de oposições radicalizadas, elaborando diversas tentativas, e ignorando o que não se encaixa na suas teorias (sempre muito durkheimiano), mas não deixando de as por em causa, vai sempre submetendo-as a comparações e formatando-as noutros exemplos. Sustentando-se num conceito de Parsons vem a dizer que: "Uma vez isolada a hierarquia como uma simples questão de valores religiosos [...] ligamos o princípio hierárquico à oposição de puro e impuro. Ora, temos de reconhecer que essa oposição, puramente religiosa, não nos diz nada sobre o lugar do poder na sociedade" (ibid.: 118-119). Mas então em que é que ficamos? Nalgumas páginas atrás disse que: "O princípio igualitário e o princípio hierárquico são realidades primeiras […] da vida política ou da vida social em geral" (ibid.: 51). Depois, mais à frente estando ainda na Introdução, diz o seguinte: " Adoptar um valor é hierarquizar […] uma certa hierarquia das ideias, das coisas e das pessoas é indispensável à vida social. Sem dúvida, na maioria dos casos a hierarquia se identificará de alguma maneira com o poder, mas o caso indiano nos ensinará que não há nisso nenhuma necessidade” (ibid.: 66). Deparamo-nos aqui com alguma confusão em que trajectos fictícios desenham processos incoerentes contaminados de infirmações.

Se nos fiarmos na teoria de Dumézil, na teoria das três funções,[4] o que nós temos é séries lineares, pensar o que seja a Índia em termos lineares é algo de errado – na Índia nada é linear, nem mesmo a estrutura social.


Há necessidade de olharmos com alguma distância para esta perspectiva hierárquica, ela não explica, ela não resolve, ela contém uma série de problemas, que parece iludir, quando se diz que a estrutura social da Índia é composta por: Brâmanes; Kshatriyas;Vaishyas;Shûdras.


Dumont, considera as quatro varnas, como uma outra hierarquia existente para além da hierarquia do puro e do impuro apresentado-os por ordem decrescente. Vejamos o seu texto: " […] no mais alto, os Brâmanes ou sacerdotes; abaixo deles, os Kshatriyas ou guerreiros; depois os Vaishyas, no uso moderno sobretudo os comerciantes; finalmente os Shûdras, servidores ou criados" (Dumont 1992: 119). Os pressupostos dumezelianos de tripartição funcional das sociedades indo-europeias são implicitamente mencionados. Na teoria das varnas a quarta categoria, a dos Shûdras surge após o período védico. Isto que aqui está ilustrado é a concepção da hierarquia de Dumont, que é radical. Para Dumont (1992: 124), há "[…] uma distinção absoluta entre sacerdócio e realeza." Na hierarquia dos varnas, engloba várias dicotomias. O conjunto das quatro varnas divide-se e subdivide-se, combinado aspectos de dependência. "Falando comparativamente, o rei perdeu suas prerrogativas religiosas: não sacrifica mais, ele faz sacrificar. O poder está, no absoluto, subordinado ao sacerdócio, ao passo que, de facto, o sacerdócio está submetido ao poder. Estatuto e poder, e consequentemente autoridades espiritual e autoridade temporal, são absolutamente distintos." […] Encontramos, então, nas varnas, essa diferenciação entre estatuto e poder […]" (ibid.: 124). Mas, atentemos naquilo que Dumont escreve na página que mencionei: «O poder está […] subordinado ao sacerdócio, ao passo que […] o sacerdócio está submetido ao poder.» …? Há que perguntar: se, o poder existe como é que ele se resolve? Dependendo de quê? De quem depende o poder na sociedade indiana, uma vez que o rei está submetido ao sacerdote? É possível hierarquizar de uma forma tão radicalmente rígida? Como nos diz Biardeau, (1972: 28) “ […] la hiérarchie sociale est définie par un ordre purement extrinsèque à ses membres. Le brâhmane n’est pas supérieur par nature, mais seulement par position. Il peut évidement déchoir de sa caste en agissant contrairement à ses devoirs, mais cela fera de lui un « hors-caste » et non un Ksatriya, ni un sûdra”. Não obstante Dumont afirma (1992: 130), "que o poder existe na sociedade, e o Brâmane que pensa na sua hierarquia sabe disso muito bem; por outro lado, a hierarquia não pode, sob pena de contradizer seu próprio princípio, lhe atribuir um lugar como tal: [Quando nós tentamos perceber como é que estes grupos reagem em termos sociológicos/religiosos nada desta hierarquia se apresenta de uma forma rígida. Continua Dumont,] é preciso, então, que ela lhe dê lugar sem lhe dizer, ela está condenada a fechar os olhos quanto a essa questão para não destruir a si mesma".

Estamos intrigados, para Dumont a hierarquia está condenada a fechar os olhos? A construção teórica dumontiana mergulha na contradição. A sustentabilidade das suas teorias, o seu subvertimento, tem um efeito de sucção. Encontramos em Dumont o arrastamento das suas postulações. "Para que a teoria de Dumont possa ser retida é indispensável que todas as oposições que ela nos propõe possam ser encaradas como pertinentes" (Gomes da Silva 1994: 202). Sabemos que assim não é, e sabemos da dificuldade que o autor do homo hierarchicus tem nesse desempenho chegando a apelar para o Manto da Virgem de Misericórdia, são palavras suas: "Assim como o manto da Virgem de Misericórdia recobre sob suas vastas dobras os pecadores de todo o tipo, a hierarquia da pureza recobre, entre outras diversidades, seu próprio contrário" (Dumont 1992: 131). Neste sentido estamos com um problema, não é possível manter esta unóculidade. Para Dumont a delimitação do espaço hierárquico é inalterável. Iremos ver que esta postura não se coaduna com a arquitectura simbólica da Índia.

Dumézil procurou encontrar na Índia em termos de concepção religiosa, aquilo que aqui está descriminado: Brâmanes; Kshatriyas; Vaishyas; Shûdras.


Se tivermos em conta estas séries lineares de Dumézil, vai dizer-nos aquilo que já sabemos - a sociedade dos Brâmanes é rigidamente hierarquizada. Mas, se pegarmos na arquitectura simbólica, a realidade já é outra. Na Índia todos os níveis de realidade sociológica são articulados com o período sazonal deste pais. Na Índia como nós vivemos um ciclo inteiro ao longo do ano, nós temos que entender aquilo que poderíamos designar por pico térmico – em meados de Julho atinge-se o máximo das temperaturas. Estas temperaturas do pico de Verão são subitamente interrompidas pela chega das chuvas de monção (na região Este).

Na Ásia (na Índia em particular) a ordem das estações, as temperaturas a partir de Janeiro/Fevereiro sobem suavemente até aos 50 graus centígrados, o que vem a seguir é a Monção.


As chuvas tropicais da Monção, põe fim a uma tortura de verão (2 meses de chuvas contínuas): Quando isto acontece é um espectáculo etnográfico decisivo. Há uma espécie de revolução instantânea, em poucas horas a paisagem transforma-se, do dia para a noite. Catherine Clément no seu livro Por Amor da Índia fala-nos dessa «magia» da monção “ […] toda a noite, uma multidão sem sono dançara nas ruas, celebrando num mesmo movimento as primeiras horas da liberdade e a chegada da monção, dupla festa. Ao alvorecer, os jovens erravam ainda pelas ruas abraçando-se uns aos outros; raparigas e rapazes, a despeito das castas, das religiões e das conveniências, trocam beijos e doces e gritavam uns aos outros: «Livres! Somos livres!» […] Camponeses agasalhados nos turbantes desfeitos vagueavam debaixo das árvores com olhares maravilhados […].”[5] Passa-se de uma paisagem, seca, árida, para uma paisagem verdejante. O Verão ainda não desapareceu, é como as duas estações se penetrassem uma na outra – assim como tudo na Índia.

O que é que esta dicotomia meramente sazonal tem a ver com a estrutura e hierarquias? Tem muito. Porque esta dicotomia, entre a estação seca e a das chuvas, rege uma quantidade de dispositivos mentais indianos. Por exemplo: "O calendário ritual de Orissa está directamente relacionado com as diferentes fases do ciclo agrícola. […] O mês lunar divide-se em duas metades - a quinzena obscura (Krsna pakhya) e a quinzena clara (sukla pakhya). A quinzena clara constitui um período particularmente favorável para a realização de cerimónias religiosas e o último dia da quinzena, purnimâ (Lua-Cheia), subsume uma forma de plenitude sociocosmogónica á qual se sucede […] um tempo de crise” (Gomes da Silva 1990: 94). O ano agrícola é evidentemente sentido em duas partes em duas metades, há uma espécie de drama cósmico. Na fase da estação quente para a das chuvas. Do ponto de vista ecológico e económico assistimos a uma crise em torno das monções. O momento do ano agrícola, é o momento forte do ano religioso, isto tem repercussões do ponto de vista sociológico. Nesta altura à uma espécie de renovação da estrutura social, reinvenção da sociedade, evidenciando a assimetria – em que as perspectivas rígidas de Dumont não contribuem para eliminar a perspectiva hierarquia.


Do ponto de vista religioso, do ponto de vista simbólico, neste momento acontece uma espécie de autêntica restruturação das coordenadas sociais, implicando a colaboração e a equivalência simbólica de actores sociológicos – entre Brâmanes e Intocáveis, desempenhando estes últimos, nestes momentos, papéis centrais.

Em termos de concepções religiosas, os primeiros textos, a primeira forma de religião que se encontra na Índia articula-se à volta do sacrifício.


O sacrifício é na Índia o momento alto das concepções religiosas. Tudo na Índia é produzido através do sacrifício. O sacrifício é o dispositivo de natureza religiosa e simbólica que supõe um sacrificante e um sacrificado. Supõe alguém que encomenda um sacrifício e que suporta os custos materiais do sacrifício. Falar de sacrifício é impossível sem trazer ao diálogo as próprias sociedades. Neste contexto, o sacrifício apresenta-se nas suas várias componentes, nomeadamente a componente religiosa, sociológica e económica.

O sacrificador, é aquele que realiza as cerimónias, os rituais, o Brâmane. Só existe um sacrificador quando existe um sacrificante. O sacrifício é o acto de poder à ordem, onde ela não existe. O mediador, que é o Brâmane, obtém por exemplo a chegada das chuvas a tempo, ou seja, em proveito de quem o sacrifício se realiza.


Qualquer homem na Índia pode ser um sacrificante. Por exemplo os Intocáveis (os que não podem ser tocados, porque quem os toca fica poluído) se ele quiser encomendar um sacrifício nem sempre encontrará para o seu sacrifício um Brâmane. Tirando algumas destas excepções, vamos dizer que qualquer homem pode realizar um sacrifício desde que arranje os meios materiais: pagar ao Brâmane os seus honorários, arranjar as condições materiais.


Mas existe um homem na Índia, um homem por excelência que ó o sacrificante, que é o Rei. O sacrificante que é o soberano, ele quer sacrificar não para si, mas para todos no terreno que ele governa, os seus súbditos. O sacrifício é uma maneira de o mundo ser viável.

"A filosofia upanisádica[6] postula – na medida mesmo que pretende transcendê-la – a existência do indivíduo particular, imerso no mundo das relações. É essa individualidade que procura dissolver o renunciante quando, deixando atrás de si a aldeia, os amigos e os parentes, se recolhe para meditar sobre a realidade última e sem formas" (Gomes da Silva 1990: 26). Raramente os Ocidentais lidam bem com esta estranheza. Inútil será acrescentar que o hinduísmo é caracterizado por uma forma própria de conceber o mundo e de romper com ele. "O sacrifício instaura um espaço culturalmente organizado, definido a partir do caos a que se opõe. Por isso mesmo, evocar o sacrifício é designar o universo anárquico em que ele se inscreve, mas que transcende. […] Pilar fundamental das concepções religiosas no período védico, o sacrifício deve ter contribuído para fixar o papel determinante do brâmane, o sacrificador por excelência. Ora, se o brâmane é o verdadeiro agente do sacrifício, o rei parece ser, desde muito cedo, o grande sacrificante (yajamana), o patrono supremo do sacrifício. […] Brâmane e soberano estabelecem uma forma de mediação entre Absoluto, a que aspiram os renunciantes (sannyâsin), e o universo de ralações sociais em que os homens se encontram inscritos" (Ibid.: 21-23).

A figura do renunciante, surge-nos como «objecto» de contraposição às teorias de Dumont, senão vejamos o que ele nos diz: "Existe […] a renúncia, de facto um estado social à margem da sociedade propriamente dita. […] O renunciante deixou o mundo para trás para se dedicar à sua própria liberação. […] Seu pensamento é o de um indivíduo. […] o renunciante não nega propriamente a religião do homem-no-mundo. [Encontramos] aquilo que abre a possibilidade de agregação: a disciplina do renunciante se acrescenta à religião do homem-do-mundo. À religião de grupo se superpõe uma religião individual, fundada numa escolha" (Dumont 1992: 324-326). Mas será que o que renunciante faz é uma escolha? Ou não será uma ruptura radical. No momento em que o homem se separa do seu grupo - acto individual - não é para reconhecer a sua individualidade, mas pelo contrário, para aboli-la, para se libertar, para atingir a mokasa. Todavia, nada se manifesta nesta construção que não tenha que ser condicionada e legitimada. A propósito desta questão, o professor Gomes da Silva, refere Madeleine Biardeau: esta autora confessa-se incapaz de aceitar construção de Dumont " […] tanto mais que a especulação indiana não faz a distinção que ele propõe entre «o homem particular», que permanece ao nível empírico, e o «indivíduo» humano, valorizado e detentor do universal. Somos nós que vemos um «indivíduo» aparecer no renunciante, mas do ponto de vista indiano, é todo o indivíduo que desaparece com a individualidade empírica" (Gomes da Silva 1994: 201-202, cf. Biardeau 1968; 38, n.º 1). O rito do sacrifício é precisamente tudo aquilo que o renunciante deve abandonar se quer escapar aos sucessivos renascimentos – o Karman.

Há sempre duas perspectivas em confronto: encontramos autores que falam da Índia de uma maneira espantosa[7] e outros que falam da Índia numa perspectiva cinzenta[8]. Duplicidade da percepção, a perspectiva do texto de Dumont é geralmente a mais forte, a perspectiva dominante, mas esta perspectiva apresenta vários problemas, tantas dificuldades, quando queremos olhar para a estrutura social através da perspectiva hierárquica.


Algumas notas conclusivas
Causam-me alguma apreensão, aos meus olhos ocidentalizados este palco de conflitos e lutas em que se movem os homens, observando e delimitando o seu campo de visão, afirmando-se seguros das suas posições. Classificar, hierarquizar, depende sempre do observador, depende de um conjunto de critérios que para além de não serem eternos sofrem alterações permanentes, pois tratam-se de domínios instáveis. Os antropólogos apercebem-se das dificuldades, que o contexto indiano nos diversos trabalhos etnográficos tem produzido. "A Índia apresenta-nos um exemplo clássico de complexidade e diversidade social" (Gomes da Silva 1994: 7). A Índia é o exemplo mais perfeito da ultrapassagem da unidade de opostos. O Ocidente procurou, mas foi incapaz de sintonizar o objecto de estudo, a civilização indiana é um extraordinário desafio à civilização Ocidental, um objecto de reflexão extraordinário. A sociedade indiana permite-nos ver que não podemos fazer antropologia ao sabor do senso comum Ocidental. Não encontramos no hinduísmo uma separação radical como queria fazer Dumont entre Brâmane e Intocável. Existe uma «linha» que os leva de um ao outro. São semelhantes e distintos ao mesmo tempo, há uma polaridade versus continuidade. Estamos perante elementos que se consubstanciam, há como que uma situação de equilíbrio onde a realidade faz esta ligação equilibrada entre semelhante e diferente.

No princípio do século antropólogos, como Louis Dumont, (um indianista Europeu) surge com uma perspectiva sobre a Índia que está longe de ser benéfica, dado que elegeu à boa maneira durkheimiana uma divisão radical, numa hierarquia rigorosa. "Para este autor, a ideologia hierárquica não se refere apenas a uma manifestação da morfologia social, mas inclui o domínio das ideias e dos valores" (ibid.: 8). A complexa estrutura da sociedade Indiana não nos permite «aceitar» os arranjos estruturais hierárquicos teorizados por Dumont. Ao longo do seu texto domo-nos conta de várias ambiguidades. A vulnerabilidade da sua tese é que entre A e B nunca existe uma adequação completa. Vimos o quanto esta posição se muniu de pressupostos, torneando, necessitando de transformar/adaptar os factos etnográficos à tese. Os aspectos políticos e religiosos são para Dumont isolados, mas vimos o quanto esta ideia é falaciosa, tudo na Índia está indissociável, nomeadamente o poder económico e o poder religioso chegando mesmo a não sabermos onde começa um e acaba o outro, aliás, eles encontra-se ligados entre si numa acepção difícil de discernir.

Segundo Dumont a hierarquia é um valor privilegiado pelas sociedades tradicionais, enquanto que a sociedade ocidental tende deliberadamente para a igualdade. Esta questão, esta distinção entre individualismo e holismo mergulha as suas raízes nas ideias de Durkheim em que a construção teórica caminha para a necessidade de demonstrar a especificidade da sociedade ocidental. O modo como Dumont reflecte sobre os actores sociais empíricos na Índia, os renunciantes, que aspiram à liberação (ao Moska), é nitidamente ocidental. Encontramos um acentuado desprezo pelo ponto de vista indiano em que a realidade é mais abrangente do que aquela que quer fazer crer.

A herança durkheimiana está presente na perspectiva dumontiana, vimos que para Dumont existe uma incompatibilidade entre castas de brâmanes e intocáveis, entre noções de «pureza» e «impureza» com as quais pretendeu sustentar a harmonia com esta perspectiva. Esta oposição levanta sérias questões, nega o individualismo à sociedade Indiana, ou seja, parece só reconhecer-se na ideologia igualitária da hierarquia. "Os brâmanes não constituem um grupo homogéneo em parte alguma da Índia. O termo aplica-se a uma classe, a um varna que inclui diferentes jâti. Na região de Karnataka, os brâmanes Marka são objecto de evitamento para numerosas castas entre as quais se contam castas de intocáveis. […] Mas duvidar da proeminência universal dos brâmanes ou da sua pureza é questionar simultaneamente a hierarquia tradicional. Os etnólogos que trabalham no subcontinente indiano reconhecem de um modo geral que brâmanes e intocáveis se situam, respectivamente, no topo e na base da estrutura social; mas todos hesitam quanto à possibilidade de definir, uma vez por todas, o estatuto dos grupos intermédios" (ibid.: 55).

Apesar do desajustamento com a realidade etnográfica, não podemos, todavia, deixar de não aceitar a contribuição de Louis Dumont como ponto de partida para a discussão dos inúmeros trabalhos sobre a Índia. «Lamentámos», no entanto, o seu assumir durkheimiano que predomina no seu texto, e que expressa um contraste dicotómico entre individualismo/holismo. O discurso de Dumont parece uma homilia insinuante, de recomendação, em que princípios evolucionistas apelam a um lugar privilegiado que seria a sociedade ocidental. Sabemos que a teoria sociológica de Durkheim tem por base a oposição radical entre solidariedade mecânica (sociedades tradicionais) e a solidariedade orgânica (a sociedade ocidental), vendo nelas, respectivamente, nas tradicionais, não mais que uma massa indiferenciada de semelhanças, enquanto na «moderna» sociedade ocidental, a dele, tinha o privilégio das diferenças. O texto de Dumont «bebe» desta perspectiva e à semelhança durkheimiana é um longo processo dos seus pressupostos em que o ponto de chegada, mais não é que a exaltação do homem ocidental. Ficámos abismados com esta postura. Não queremos ser sarcásticos, mas quando sabemos o quanto a sociedade Indiana tem de profissões diferenciadas. Como antropólogo vimo-lo aprisionado nas suas ideologias, pela intenção utópica da hierarquia e da dificuldade de ultrapassar os seus credos.


Bibliografia
BIARDEAU, Madeleine: L'Hindouisme – Anthropologie d'une Civilisation, Flammarion, Paris, 1972.
CLÉMENT, Catherine: Por amor da Índia, Edições ASA, Lisboa, 1ª edição, 1995.
DUMONT, Louis: Homo hierarchicus. O sistema das castas e suas implicações (trad. Carlos Alberto Fonseca), Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 1992 [1966].
DURKEIM, Émile: "De Quelques Formes Primitives de Classification" in Journal Sociologique, Presses Universitaires de France, Paris, Vol. VI., 1969.
GOMES DA SILVA, José Carlos: A Identidade Roubada – Ensaios de Antropologia Social, Gradiva, Lisboa, 1ª edição, 1994.
-----------------------------------------: ORISSA – Antropologia e Literatura de Viagens, Lisboa, M.E. – I.I.C.T., 1990.
LÉVI-STRAUSS, Claude: O Pensamento Selvagem (trad. T. Pellegrini), Campinas, Brasil, Papirus Editora, 1989 [1962].
PEREZ, Rosa Maria: “Corpos Impuros – Mulheres e Intocáveis na Índia", in Corpo Presente – Treze reflexões antropológicas sobre o corpo, (org. Miguel Vale de Almeida), Celta Editora, Oeiras, 1996.
-------------------------: Reis e Intocáveis – Um Estudo do sistema de Castas no Noroeste da Índia, Celta Editora, Lisboa, 1994.


[1] Homo hierarchicus. O sistema das castas e suas implicações, Trad. Carlos Alberto Fonseca, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 1992 [1966].
[2] A citação de Rosa Maria Perez refere-se ao seu ensaio: Reis e Intocáveis – Um Estudo do sistema de Castas no Noroeste da Índia, Celta Editora, Lisboa, 1994.
[3] "Este nome, enquanto designação de casta, tem pois uma origem relativamente recente e constitui um eufemismo sociológico (construído a partir do verbo vanvu, "tecer") para esconder a extrema depreciação de dhed, hoje usado no Gujarate com o sentido de "sujo". Portanto o nome Vankar designa uma casta intocável de tecelões. (PEREZ, Rosa Maria: antropológicas Corpos Impuros - Mulheres e Intocáveis na Índia, in Corpo Presente - Treze reflexões sobre o corpo, (org. Miguel Vale de Almeida), Celta Editora, Oeiras, 1996, p. 49.
[4] Em 1938 Georges Dumézil elaborou pela primeira vez a teoria das três funções, na sociedade dos indo-europeus: sacerdotal, guerreira e produtora. Na exposição clássica da sua doutrina (1958), Dumézil afirmava que estas três funções distinguiam a sociedade indo-europeia de qualquer outra. Dumézil vê o mundo como um todo articulado e para o caso da Índia designou uma repartição em três classes (varna): Brahmana, Ksatriya e Vaisya. Esta repartição ilustra as funções da ideologia tripartida dos indo-europeus descrita por Dumézil. A cada função ou aspecto da função corresponde um momento particular do tempo histórico. Em 1968 (data da obra Mythe et Epopée), Dumézil, retomando o princípio de Durkheim, segundo o qual todo o mito constitui uma representação da realidade social, empenha-se em demonstrar que a maioria das sociedades indo-europeias ofereciam um certo número de representações colectivas comuns. O sistema trifuncional veicula um ideal e ao mesmo tempo pretende ser um meio de analisar, de interpretar as forças que asseguram o curso do mundo e a vida dos homens.
[5] Esta referência não terá se quisermos um cunho científico, uma vez que se trata de um romance, todavia a ênfase emocional aloja-se e coincide ou não nas descrições etnográficas. CLÉMENT, Catherine: Por amor da Índia, Edições ASA, Lisboa, 1ª edição, 1995, p.222.
[6] Esta palavra sugere-nos: uma filosofia bruscosádica, tendo a sua raiz no Upa, s.f. (ingl. Up). Salto brusco do cavalo; corcovo. Por ext. Exprime o acto de se levantar alguém com dificuldade …, daí a analogia (Upa+Sádico).
[7] M. Biardeau; Gomes da Silva; R. Perez.
[8] L. Dumont; G. Dumézil; C. Bouglé.

Análise de Objectos - Entre o Espanto e o Esquecimento

A Exposição Entre o Espanto e o Esquecimento – Arqueologia das Sociedades Brasileiras antes do Contacto[1], teve como focagem temática o intuito de sublinhar as manifestações artísticas de grupos indígenas que habitaram o território brasileiro, anterior à chegada de Pedro Alvares Cabral, cobrindo um período de aproximadamente 15 mil anos, esta exposição pretendeu, como tónica principal, mudar o conceito tradicional pelo qual têm sido descritos os autóctones deste território.

Os objectos expostos mostraram-nos exemplos de manifestações culturais complexas, de um território povoado por grupos que foram concebidos de maneira etnocêntrica, alvos de olhares muitas das vezes pouco pacíficos e que a expansão ocidental na persecução dos seus interesses manifestou.


Simultaneamente os seus realizadores procuraram estabelecer um paralelo com as manifestações culturais europeias, nomeadamente com as pinturas rupestres em Foz Côa (Portugal).


Pretendendo um novo olhar sobre testemunhos carregados de valor simbólico, os objectos escolhidos procuraram mostrar a diversidade e o reconhecimento da arqueologia brasileira, abrangendo a sua reflexão antropológica à arqueologia portuguesa.


Passados 500 anos após o contacto, e no intuito de modificar a visão dos diversos olhares etnocêntricos, criados durante séculos, ultrapassar o “Esquecimento” e recuperar o “Espanto”, foi a proposta dos seus realizadores.


Sendo o público elemento último a quem se destina qualquer exposição, a manifestação importante deste evento tem como estimulante da sua adesão os testemunhos de sociedades ditas tradicionais que pressupõem a existência de uma preocupação "artística" que está para lá das satisfações básicas de sobrevivência.

O discurso que norteou a apresentação do tema, a sua estratégia retórica expositiva, sugeriu uma articulação na manifestação de papéis, fornecendo elementos de paralelismo e diversidade entre as culturas, – a brasileira e a europeia – através de vestígios que pela sua combinação arqueológica, histórica e etnográfica proporcionaram ao visitante, através do visual exibido, uma linguagem simbólica passível de extrair e reconhecer num mesmo processo cognitivo de complexificação.


Estabelecendo um diálogo entre as tecnologias ditas tradicionais e as de contexto europeu permite reconhecer, isolando algumas variáveis, a aparente homogeneidade em que os elementos em pedra, conchas, ossos e cerâmicos, diagnosticam um domínio de técnicas que nos permite conjecturar uma grande especialização. Em termos estéticos, a variedade das formas, o seu grafismo, os motivos decorativos, revelam um universo ideológico vinculador de situações diferenciadas, cuja complexidade crescente vai dando origem a distintas formas de comunicação.

A leitura pretendida das peças não é linear, por exemplo, os machados que se encontravam nas mesas-mostruário no início e no fim, no convencionado fim da exposição que pretende testemunhar o contacto, aponta-nos que o seu posicionamento constitui-a um registo progressivo vinculador de situações diferenciadas. Ou seja, se o primeiro é utilizado como “ferramenta”, já o segundo é sugerido como objecto de ritualidade. Assim, poder-se-ão destinguir duas categorias de objectos: os úteis e os mágicos.


Qualquer destas categorias, distintas segundo a função e o significado, pode apresentar-se também com uma outra característica pragmática: se os utensílios possuíam inicialmente a capacidade de serem manuseados para o máximo das funções, a relação do homem com os mesmos vão gerando uma margem de inutilidade que permite o adorno e a decoração.


Estando os objectos mágicos ligados ao sagrado e à simbologia e tendo os objectos úteis uma função técnica, não se pode excluir de neles se integrar um atributo, que tanto está, ou pode estar, presente nos objectos mágicos como nos úteis. O adorno não é, portanto, uma qualidade intrínseca dos objectos. "A procura do significado, a tendência a estabelecer e a reforçar os laços com o invisível, faz-se sempre em detrimento da utilidade (…)" (Pomian 1984: 73).

Lugar de tensões, a exposição, implica a gestão de vários elementos necessários à sua concretização. O modo ou o processo da exposição implica ter em conta, entre outras coisas, o itinerário, as cores, os materiais, o espaço, a iluminação, o catálogo, tudo isto congregando-se para criar uma leitura dos objectos expostos, que são eles o pretexto do encontro do público consigo próprio e com a realidade.

Nos variados aspectos inerentes à realização desta exposição, começarei por aludir o itinerário, na medida em que este se apresentou com uma índole flexível, parecendo-me adequado defini-lo como semi-estruturado, isto é, a distribuição temática não era austera, se tivermos em conta que tanto a entrada como a saída podiam ser transgredidas, embora ambas estivessem definidas.


Tendo em conta que se pretendeu estabelecer o início do percurso da exposição, com a visualização de painéis de arte rupestre – pese embora que a exposição pretenda sublinhar a coerência do discurso produzido – o testemunho de alguns artefactos enfatizam o "primeiro" contacto do homem europeu, encontramos assim, nesta orientação, um sentido subjacente, pedindo uma leitura de registo de experiências bem "lá atrás", até ao contacto. Porém, ela, a leitura, também se pode fazer no sentido inverso.


Não me pareceu que a saída em termos físicos significa-se o culminar da exposição. E porquê? Por duas razões: a primeira é a porta que encontrei junto à mesa-mostruário onde estavam expostos os machados que simbolizavam o contacto, não tinham nenhuma indicação que disse-se «saída». O visitante serve-se desta escapatória, se reparar, ou alguém lhe disser, que ao fundo das escadas existe um bar. Por outro lado, encontrei nesta exposição um carácter circular, ou seja, senti-me intuído a circular, a uma determinada altura, tanto posso ir para a direita como para a esquerda, a escolha por um dos lados "exige" que eu volte, ou melhor, que eu circule em ambos os lados acabando por voltar onde iniciei.

A distribuição dos artefactos, com os seus núcleos expositivos não nos obrigava a uma ordem, isto é, consoante o interesse de cada pessoa, o critério podia ser feito por urnas, vasilhames, ou mesmo por agrupamento em função da cultura, da civilização que os produziu.


A cor das paredes no espaço da exposição, no início, apresentava-se sugestiva, uma vez que contrastava com as peças em exposição fazendo-as sobressair, todavia, ao fim do terceiro núcleo percorrido achei-a cansativa. Já os painéis de texto impresso achei-os pertinentes e bem balizados, tanto pelo seu enquadramento como pelo seu conteúdo.


As vitrinas salientavam a distância que se cria entre o objecto e o visitante, preenchendo em minha opinião a sua principal função, proteger e realçar os artefactos. Contudo, salienta-se uma barreira, com excepção de algumas peças de grandes dimensões, a visão é o único meio de acesso às mesmas. Mas é inteligível se atendermos ao equilíbrio que foi procurado entre a segurança das peças e o seu destaque. Outra função das vitrinas, que nos merece salientar nesta exposição, assenta na percepção da dimensão dos objectos, ou seja, as vitrinas impõem pela distância (objecto/visitante) a apreensão do tamanho dos objectos.


Esta exposição encontrou-se distribuída por cinco núcleos que procuravam contextualizar e proporcionar algumas referências, glorificando e enaltecendo ou simplesmente dando a ver ou a informar, claramente com o intuito de sensibilizar e despertar o visitante para a emergência de um estudo mais profundo.


Logo no primeiro núcleo, deparávamo-nos com uma das vitrinas sem estar contextualizada, o processo de informação reunida não existia, foi perdido e isto remete-nos para a hipótese de que estas peças façam parte do acervo de algum coleccionador particular. Como aconteceu ao longo de toda a exposição a legendagem era bastante discreta, carecendo de um posicionamento em termos de datação.


Quanto à iluminação, no global da exposição, revelou-se bastante discreta e sóbria, permitindo conferir relevo aos objectos, facilitando a primazia dos objectos e a manipulação dos mesmos. Nesta manipulação, a luz é um elemento decisivo, o misto de luz natural e artificial com que esta exposição foi contemplada, traduz-se, em termos de equilíbrio visual, agradável. Por exemplo, reparamos na preocupação de colocar os três maiores "vasos" da exposição num espaço junto a uma janela.


Havendo normalmente nas exposições temporárias, a tendência para uma grande densidade de objectos, na minha opinião, nesta exposição tal não se verificou, ou seja, encontrei um acentuado equilíbrio na volumetria, no seu conjunto.


Por último, gostaria de aludir aos diaporamas, que foram projectados num pequeno cubículo, sobre gravuras rupestres, e que o visitante tem tendência para visitar no regresso, concluída a visita aos artefactos. Esta projecção de slides, embora se encontre no início da exposição, implica uma interrupção de movimento direccional. Todavia, devido à sua menor atenção inicial, acabou por ganhar grande relevância, uma vez que, estando num compartimento isolado não perturbava a exposição.

Na tentativa de alcançar um equilíbrio, a concretização desta exposição, proporcionou-nos a leitura de um catálogo que serviu para ladear algumas insuficiências. Se o catálogo deve servir apenas como suporte de informação complementar ele ultrapassou a função de inventariar os objectos expostos, ou seja, acaba por servir, de modo intencionado ou não, para suplantar as eventuais falhas da exposição, isto porque os textos não se limitam a uma descrição visual dos objectos, contudo, a sua função acessória não foi refutada encontrando-se um relativo equilíbrio entre as duas, descritiva e não-discritiva.

Cada peça estava entregue a si própria, podendo ser alvo de inúmeras leituras, posicionou-nos na tentativa da busca da compreensão dos aspectos simbólicos e metafóricos que cada peça deixa perceber na sua singularidade. Aqui como noutro qualquer lugar, como diz João Vasconcelos no seu estudo da Serra de Arga (1997: 228-229), " (…) aquilo que se exibe como "cultura" tende a ser uma imagem feita de fragmentos do passado (…)", passado esse, pelo qual somos invadidos pela nostalgia e pela impossibilidade de descodificar o seu significado que nos provoca emoções, atraídos que estamos pela sobrevivência que testemunha um pretérito que importa preservar.

À laia de conclusão, referirei que esta exposição constitui-o um importante "ferramenta" de reflexão, contradizendo, as informações rudimentares retidas nas fontes históricas que se perpetuaram até à actualidade, em relação ao elemento autóctone, ou como se diz no catálogo (p. 33): "Estes objectos têm servido de base para o questionamento sobre a simplicidade com que tradicionalmente têm sido descritas estas populações".


A exposição apresenta-se como uma forma de comunicação não-verbal, que pressupõe a existência preferencial de objectos que se mostram ou se evidenciam, com uma carga intencional que visa uma participação na diversidade cultural.


Os artefactos desta exposição permitiram, também, resgatar-nos para a reflexão antropológica, procurando articular manifestações culturais que foram mal compreendidas e alvo de posições etnocêntricas. Os registos de experiências humanas passadas, encerram em si um importante mediador de comunicação entre dois mundos latentes, estimulando uma estreita associação susceptível de uma apreciação estética, em que "a oposição entre o visível e o invisível pode manifestar-se de modos extremamente variáveis" (Pomian 1984: 66).


Para terminar, reflectindo naquilo que é para a antropologia inequívoco, o conteúdo, os objectos expostos propuseram uma travessia a um imaginário regresso ao passado em que a autenticidade dos objectos nos impele a dizer que o olhar é um doce espanto. Sendo a unidade visual tão importante como a clareza da temática escolhida, a intenção de "mostrar" por parte dos seus autores evidenciaram e denunciaram uma forte eupatia, que as hipocrisias ocidentais alimentaram. Afinal, é de suspeitar que o olhar tem de ser um acto militante, sendo o lugar desta exposição o reflexo dos desenvolvimentos actuais do saber antropológico, sobretudo sobre a alteridade e a problematização.


Bibliografia
ECO, Umberto (1986), Viagem na Irrealidade Quotidiana. Lisboa: Difel.

POMIAN, Krzysztof (1984) “Colecção”. Enciclopédia Einaudi, Volume 1 (Memória-História). Lisboa: INCM, pp. 51-86.
SCATAMACCHIA, M. C. M. & OOSTERBEEK, L. M. [org.] Entre o espanto e o esquecimento –Arqueologia das Sociedades Brasileiras antes do Contacto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian /catálogo da exposição/.
VASCONCELOS, João (1997) “Tempos Remotos: A Presença do Passado na Objectivação da Cultura Local”: Etnográfica Revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, 1, 2, pp. 213-235.




[1] Entre 25 de Outubro de 2000 e 16 de Janeiro de 2001, a exposição que esteve presente ao público no edifício do Museu Calouste Gulbenkian – Serviço de Belas Artes – na Galeria de Exposições Temporárias da sede, fez parte de uma amostra apresentada na Fundação Bienal de S. Paulo, entre 3 de Maio e 3 de Junho de 2000, sobre arqueologia brasileira – organizada a partir do espólio do Museu de Arqueologia e Etnologia de S. Paulo.