Análise de Objectos - Entre o Espanto e o Esquecimento

A Exposição Entre o Espanto e o Esquecimento – Arqueologia das Sociedades Brasileiras antes do Contacto[1], teve como focagem temática o intuito de sublinhar as manifestações artísticas de grupos indígenas que habitaram o território brasileiro, anterior à chegada de Pedro Alvares Cabral, cobrindo um período de aproximadamente 15 mil anos, esta exposição pretendeu, como tónica principal, mudar o conceito tradicional pelo qual têm sido descritos os autóctones deste território.

Os objectos expostos mostraram-nos exemplos de manifestações culturais complexas, de um território povoado por grupos que foram concebidos de maneira etnocêntrica, alvos de olhares muitas das vezes pouco pacíficos e que a expansão ocidental na persecução dos seus interesses manifestou.


Simultaneamente os seus realizadores procuraram estabelecer um paralelo com as manifestações culturais europeias, nomeadamente com as pinturas rupestres em Foz Côa (Portugal).


Pretendendo um novo olhar sobre testemunhos carregados de valor simbólico, os objectos escolhidos procuraram mostrar a diversidade e o reconhecimento da arqueologia brasileira, abrangendo a sua reflexão antropológica à arqueologia portuguesa.


Passados 500 anos após o contacto, e no intuito de modificar a visão dos diversos olhares etnocêntricos, criados durante séculos, ultrapassar o “Esquecimento” e recuperar o “Espanto”, foi a proposta dos seus realizadores.


Sendo o público elemento último a quem se destina qualquer exposição, a manifestação importante deste evento tem como estimulante da sua adesão os testemunhos de sociedades ditas tradicionais que pressupõem a existência de uma preocupação "artística" que está para lá das satisfações básicas de sobrevivência.

O discurso que norteou a apresentação do tema, a sua estratégia retórica expositiva, sugeriu uma articulação na manifestação de papéis, fornecendo elementos de paralelismo e diversidade entre as culturas, – a brasileira e a europeia – através de vestígios que pela sua combinação arqueológica, histórica e etnográfica proporcionaram ao visitante, através do visual exibido, uma linguagem simbólica passível de extrair e reconhecer num mesmo processo cognitivo de complexificação.


Estabelecendo um diálogo entre as tecnologias ditas tradicionais e as de contexto europeu permite reconhecer, isolando algumas variáveis, a aparente homogeneidade em que os elementos em pedra, conchas, ossos e cerâmicos, diagnosticam um domínio de técnicas que nos permite conjecturar uma grande especialização. Em termos estéticos, a variedade das formas, o seu grafismo, os motivos decorativos, revelam um universo ideológico vinculador de situações diferenciadas, cuja complexidade crescente vai dando origem a distintas formas de comunicação.

A leitura pretendida das peças não é linear, por exemplo, os machados que se encontravam nas mesas-mostruário no início e no fim, no convencionado fim da exposição que pretende testemunhar o contacto, aponta-nos que o seu posicionamento constitui-a um registo progressivo vinculador de situações diferenciadas. Ou seja, se o primeiro é utilizado como “ferramenta”, já o segundo é sugerido como objecto de ritualidade. Assim, poder-se-ão destinguir duas categorias de objectos: os úteis e os mágicos.


Qualquer destas categorias, distintas segundo a função e o significado, pode apresentar-se também com uma outra característica pragmática: se os utensílios possuíam inicialmente a capacidade de serem manuseados para o máximo das funções, a relação do homem com os mesmos vão gerando uma margem de inutilidade que permite o adorno e a decoração.


Estando os objectos mágicos ligados ao sagrado e à simbologia e tendo os objectos úteis uma função técnica, não se pode excluir de neles se integrar um atributo, que tanto está, ou pode estar, presente nos objectos mágicos como nos úteis. O adorno não é, portanto, uma qualidade intrínseca dos objectos. "A procura do significado, a tendência a estabelecer e a reforçar os laços com o invisível, faz-se sempre em detrimento da utilidade (…)" (Pomian 1984: 73).

Lugar de tensões, a exposição, implica a gestão de vários elementos necessários à sua concretização. O modo ou o processo da exposição implica ter em conta, entre outras coisas, o itinerário, as cores, os materiais, o espaço, a iluminação, o catálogo, tudo isto congregando-se para criar uma leitura dos objectos expostos, que são eles o pretexto do encontro do público consigo próprio e com a realidade.

Nos variados aspectos inerentes à realização desta exposição, começarei por aludir o itinerário, na medida em que este se apresentou com uma índole flexível, parecendo-me adequado defini-lo como semi-estruturado, isto é, a distribuição temática não era austera, se tivermos em conta que tanto a entrada como a saída podiam ser transgredidas, embora ambas estivessem definidas.


Tendo em conta que se pretendeu estabelecer o início do percurso da exposição, com a visualização de painéis de arte rupestre – pese embora que a exposição pretenda sublinhar a coerência do discurso produzido – o testemunho de alguns artefactos enfatizam o "primeiro" contacto do homem europeu, encontramos assim, nesta orientação, um sentido subjacente, pedindo uma leitura de registo de experiências bem "lá atrás", até ao contacto. Porém, ela, a leitura, também se pode fazer no sentido inverso.


Não me pareceu que a saída em termos físicos significa-se o culminar da exposição. E porquê? Por duas razões: a primeira é a porta que encontrei junto à mesa-mostruário onde estavam expostos os machados que simbolizavam o contacto, não tinham nenhuma indicação que disse-se «saída». O visitante serve-se desta escapatória, se reparar, ou alguém lhe disser, que ao fundo das escadas existe um bar. Por outro lado, encontrei nesta exposição um carácter circular, ou seja, senti-me intuído a circular, a uma determinada altura, tanto posso ir para a direita como para a esquerda, a escolha por um dos lados "exige" que eu volte, ou melhor, que eu circule em ambos os lados acabando por voltar onde iniciei.

A distribuição dos artefactos, com os seus núcleos expositivos não nos obrigava a uma ordem, isto é, consoante o interesse de cada pessoa, o critério podia ser feito por urnas, vasilhames, ou mesmo por agrupamento em função da cultura, da civilização que os produziu.


A cor das paredes no espaço da exposição, no início, apresentava-se sugestiva, uma vez que contrastava com as peças em exposição fazendo-as sobressair, todavia, ao fim do terceiro núcleo percorrido achei-a cansativa. Já os painéis de texto impresso achei-os pertinentes e bem balizados, tanto pelo seu enquadramento como pelo seu conteúdo.


As vitrinas salientavam a distância que se cria entre o objecto e o visitante, preenchendo em minha opinião a sua principal função, proteger e realçar os artefactos. Contudo, salienta-se uma barreira, com excepção de algumas peças de grandes dimensões, a visão é o único meio de acesso às mesmas. Mas é inteligível se atendermos ao equilíbrio que foi procurado entre a segurança das peças e o seu destaque. Outra função das vitrinas, que nos merece salientar nesta exposição, assenta na percepção da dimensão dos objectos, ou seja, as vitrinas impõem pela distância (objecto/visitante) a apreensão do tamanho dos objectos.


Esta exposição encontrou-se distribuída por cinco núcleos que procuravam contextualizar e proporcionar algumas referências, glorificando e enaltecendo ou simplesmente dando a ver ou a informar, claramente com o intuito de sensibilizar e despertar o visitante para a emergência de um estudo mais profundo.


Logo no primeiro núcleo, deparávamo-nos com uma das vitrinas sem estar contextualizada, o processo de informação reunida não existia, foi perdido e isto remete-nos para a hipótese de que estas peças façam parte do acervo de algum coleccionador particular. Como aconteceu ao longo de toda a exposição a legendagem era bastante discreta, carecendo de um posicionamento em termos de datação.


Quanto à iluminação, no global da exposição, revelou-se bastante discreta e sóbria, permitindo conferir relevo aos objectos, facilitando a primazia dos objectos e a manipulação dos mesmos. Nesta manipulação, a luz é um elemento decisivo, o misto de luz natural e artificial com que esta exposição foi contemplada, traduz-se, em termos de equilíbrio visual, agradável. Por exemplo, reparamos na preocupação de colocar os três maiores "vasos" da exposição num espaço junto a uma janela.


Havendo normalmente nas exposições temporárias, a tendência para uma grande densidade de objectos, na minha opinião, nesta exposição tal não se verificou, ou seja, encontrei um acentuado equilíbrio na volumetria, no seu conjunto.


Por último, gostaria de aludir aos diaporamas, que foram projectados num pequeno cubículo, sobre gravuras rupestres, e que o visitante tem tendência para visitar no regresso, concluída a visita aos artefactos. Esta projecção de slides, embora se encontre no início da exposição, implica uma interrupção de movimento direccional. Todavia, devido à sua menor atenção inicial, acabou por ganhar grande relevância, uma vez que, estando num compartimento isolado não perturbava a exposição.

Na tentativa de alcançar um equilíbrio, a concretização desta exposição, proporcionou-nos a leitura de um catálogo que serviu para ladear algumas insuficiências. Se o catálogo deve servir apenas como suporte de informação complementar ele ultrapassou a função de inventariar os objectos expostos, ou seja, acaba por servir, de modo intencionado ou não, para suplantar as eventuais falhas da exposição, isto porque os textos não se limitam a uma descrição visual dos objectos, contudo, a sua função acessória não foi refutada encontrando-se um relativo equilíbrio entre as duas, descritiva e não-discritiva.

Cada peça estava entregue a si própria, podendo ser alvo de inúmeras leituras, posicionou-nos na tentativa da busca da compreensão dos aspectos simbólicos e metafóricos que cada peça deixa perceber na sua singularidade. Aqui como noutro qualquer lugar, como diz João Vasconcelos no seu estudo da Serra de Arga (1997: 228-229), " (…) aquilo que se exibe como "cultura" tende a ser uma imagem feita de fragmentos do passado (…)", passado esse, pelo qual somos invadidos pela nostalgia e pela impossibilidade de descodificar o seu significado que nos provoca emoções, atraídos que estamos pela sobrevivência que testemunha um pretérito que importa preservar.

À laia de conclusão, referirei que esta exposição constitui-o um importante "ferramenta" de reflexão, contradizendo, as informações rudimentares retidas nas fontes históricas que se perpetuaram até à actualidade, em relação ao elemento autóctone, ou como se diz no catálogo (p. 33): "Estes objectos têm servido de base para o questionamento sobre a simplicidade com que tradicionalmente têm sido descritas estas populações".


A exposição apresenta-se como uma forma de comunicação não-verbal, que pressupõe a existência preferencial de objectos que se mostram ou se evidenciam, com uma carga intencional que visa uma participação na diversidade cultural.


Os artefactos desta exposição permitiram, também, resgatar-nos para a reflexão antropológica, procurando articular manifestações culturais que foram mal compreendidas e alvo de posições etnocêntricas. Os registos de experiências humanas passadas, encerram em si um importante mediador de comunicação entre dois mundos latentes, estimulando uma estreita associação susceptível de uma apreciação estética, em que "a oposição entre o visível e o invisível pode manifestar-se de modos extremamente variáveis" (Pomian 1984: 66).


Para terminar, reflectindo naquilo que é para a antropologia inequívoco, o conteúdo, os objectos expostos propuseram uma travessia a um imaginário regresso ao passado em que a autenticidade dos objectos nos impele a dizer que o olhar é um doce espanto. Sendo a unidade visual tão importante como a clareza da temática escolhida, a intenção de "mostrar" por parte dos seus autores evidenciaram e denunciaram uma forte eupatia, que as hipocrisias ocidentais alimentaram. Afinal, é de suspeitar que o olhar tem de ser um acto militante, sendo o lugar desta exposição o reflexo dos desenvolvimentos actuais do saber antropológico, sobretudo sobre a alteridade e a problematização.


Bibliografia
ECO, Umberto (1986), Viagem na Irrealidade Quotidiana. Lisboa: Difel.

POMIAN, Krzysztof (1984) “Colecção”. Enciclopédia Einaudi, Volume 1 (Memória-História). Lisboa: INCM, pp. 51-86.
SCATAMACCHIA, M. C. M. & OOSTERBEEK, L. M. [org.] Entre o espanto e o esquecimento –Arqueologia das Sociedades Brasileiras antes do Contacto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian /catálogo da exposição/.
VASCONCELOS, João (1997) “Tempos Remotos: A Presença do Passado na Objectivação da Cultura Local”: Etnográfica Revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, 1, 2, pp. 213-235.




[1] Entre 25 de Outubro de 2000 e 16 de Janeiro de 2001, a exposição que esteve presente ao público no edifício do Museu Calouste Gulbenkian – Serviço de Belas Artes – na Galeria de Exposições Temporárias da sede, fez parte de uma amostra apresentada na Fundação Bienal de S. Paulo, entre 3 de Maio e 3 de Junho de 2000, sobre arqueologia brasileira – organizada a partir do espólio do Museu de Arqueologia e Etnologia de S. Paulo.

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