A Sociedade Balinesa Sob o Ponto de Vista Político (O Estado Teatro do Século XIX)

“NEGARA – A ACÇÃO SIMBÓLICA DO PODER E DA TEATRALIDADE"

"Todo o sistema de poder é um dispositivo destinado a produzir efeitos nomeadamente aqueles que se comparam às ilusões criadas pela maquinaria do teatro".
Georges Balandier

Um dos campos de análise mais apaixonantes[1] da antropologia é, sem dúvida, o da política. O Político não existe na realidade (o político é muita coisa), quando falamos de político, estamos a criar um quadro de conceitos, identidades abstractas, mas que permitem demonstrar a realidade – o conceito só tem sentido porque ele tem força heurística, essa arte de inventar, de fazer descobertas. Só há Ciência porque nós trabalhamos a partir de conceitos. Político é uma óptica de abordagem do social que vive sempre misturado com outras dimensões do social. O político está em todo o lado, mas nós por razões de análise definimos conceitos e tentámos ver as relações sociais sobre a óptica da política.

É através do estudo das instituições implicadas no dinamismo, transformação e perpetuação das sociedades, que o antropólogo pode sentir o «pulsar» de qualquer sociedade, seja ela ocidental ou outra, porque afinal a política é, como diz Balandier (1999: 16) “ (…) um instrumento de descoberta e de estudo de diversas instituições e práticas que asseguram o governo dos homens, assim como dos sistemas de pensamento e dos símbolos que os fundamentam”.Sendo o simbólico um jogo de comparações, de equivalências, este simbólico é, necessariamente, indispensável à actividade do político. É nesta perspectiva que nos interessa abordar, analisar e problematizar neste trabalho a monografia de Clifford Geertz, Negara – O Estado Teatro do Século XIX, os mecanismos da ascensão do poder, bem como a acção simbólica do poder e da sua teatralidade.


Fazendo uma abordagem à acção simbólica do poder e da teatralidade na política tradicional do sudoeste asiático, Geertz, pioneiro das correntes hermenêuticas, virá a desenvolver, a reformular, os fundamentos epistemológicos da antropologia. Sendo a hermenêutica a ciência da interpretação, para Geertz, a verdadeira missão da antropologia não é a observação comportamental das outras sociedades, mas a compreensão do ponto de vista que os seus membros detêm da sua própria sociedade. Isto é, Geertz via a “cultura[2]” e a sua análise não como uma ciência experimental, mas como uma ciência interpretativa em busca de significados.


Geertz, construindo um “retracto” da organização balinense oitocentista, utilizando uma abordagem etnográfica, a partir da política praticada pelo Estado tradicional balinês, elabora diversas questões antropológicas, que serão ponto de ruptura com as conceptualizações da antropologia política precedentes do movimento pós-modernista do qual fez parte. Através de uma descrição minuciosa da sociedade balinense, das suas instituições e relações sociais, esta obra é, como diz Miguel Vale de Almeida em Nota de Apresentação, “ (…) uma incursão antropológica na história, através da reconstituição de uma formação social do século passado e da instituição do Estado; por outro tem implícita uma crítica ao pensamento ocidental sobre a política e o Estado” (Geertz 1991: IX-X). Encontramos porém, na sustentabilidade das suas teorias, um efeito de sucussão, um modo de exploração que produz «ruído», como que um abanão muito estremado.
Política e poder são duas categorias que caminham lado a lado. As relações de poder, por exemplo na aprendizagem, são relações de poder inevitáveis – o professor é que dá as notas e não os alunos, ou seja, no momento em que estamos a aprender estamos a relacionarmo-nos politicamente. Daqui resulta que a obtenção, a implementação duma ordem social precisa tanto de um sistema de pensamento como de uma força capaz de exercer o poder e para que isto aconteça é necessário que haja quem exerça esse mesmo poder e quem se submeta a ele.

Contextualização

- Nobreza e campesinato: fragmentação e integração

Estratificada, com um sistema de castas, a sociedade balinesa “ (…) foi uma pirâmide acrobática de «reinos» com graus variados de autonomia substancial e poder efectivo” (Geertz 1991: 28). Da enorme afluência de modelos culturais económicos e sociais, Geertz constata a ausência da mais importante das instituições, considerada essencial para a formação do carácter básico civilizacional da Indonésia, sendo que essa instituição é o Estado traduzido por Negara[3].


O equilíbrio do poder no Bali tradicional assentava na distinção entre nobreza e campesinato; na variedade do sistema de parentesco e no clientelismo. Consequentemente, o equilíbrio dentro dos reinos era delicado, pois ora se inclinava para um lado, para a integração, ora para a fragmentação. Quando Geertz faz a distinção entre nobreza e campesinato, o que pretende é focar o contraste, mencionar a separação, mostrar a existência de dois tipos de formação política muito diferentes, mas ao mesmo tempo interligados, i.e., um deles centrado nos processos políticos regionais e inter-regionais e outro centrado em processos locais de natureza instrumental. Tratava-se de uma questão complexa entre instituições do Estado-teatro e as do governo local.


Desenhando uma área de influência política, no Bali, clima e geografia determinam a expansão do poder. Segundo Geertz, a morfologia geográfica permitiu desenvolver sistemas de controlo político, económico, social e ritualista, dispersos ao longo das encostas. Consoante a altitude da ilha, assim esta apresenta características naturais diferentes – a Sul planícies, e a Norte as montanhas. Esta caracterização geográfica leva a que existissem conflitos, atendendo a que uns queriam fomentar a unidade regional e outros a independência local ou sub-regional. “O interesse a curto prazo dos senhores das terra altas era sempre, pois, a fragmentação, pelo menos na generalidade da região; o dos das terras baixas era a integração” (ibid.: 35). Consequentemente, como resultado desta paisagem, passou a existir conflitos e lutas pelo poder, entre o Norte e o Sul. Esta situação faz com que surjam aliados e alianças entre os dois pólos. “ (...) qualquer senhor importante de um domínio vizinho prestava de bom grado ajuda a uma rebelião das terras altas que pudesse enfraquecer um rival das terras baixas” (id. Ibid.: 36-37).

- A classe dirigente e as suas instituições
As estratégias utilizadas para a organização interna das relações políticas da classe dirigente, eram feitas do seguinte modo: o sistema de castas; o grupo de descendência (a dadia) e o padrão do status decrescente; do clientelismo; e das alianças matrimoniais. No sistema da dadia fazem parte os indivíduos que são considerados descendentes agnáticos de um mesmo antepassado. As dadias eram autónomas, sendo unidades de organização do Estado, elas competiam pelo poder e pela influência, uma vez assegurado estas componentes invocavam direitos rituais para a legitimação do poder. Como eram essencialmente federações, as dadias, podiam lutar entre si pelo poder, mas não podiam alterar a estrutura da autoridade.



Com uma organização peculiar, e estabelecendo entre eles relações, em Bali existem três campos de competências são eles: o banjar, o subak, o pamaksan. “ (...) esta tríade de corporações forma o coração político do sistema desa (…)” (Geertz 199: 75). Tendo o rei a manutenção do poder, este irradia prestígio, sendo que a um nível «inferior» realizam-se as coligações políticas, porém este não se pode afastar das bases, pois a obtenção e reprodução do poder tornava-se uma tarefa complicada.


A nobreza conglomerava as três varnas superiores: Brahmana, Satria, Wesia e o campesinato os Sudras. Todavia, entre os nobres nem todos possuíam poder, i.e., não podiam exercer papéis políticos relevantes em qualquer ocasião. Esta questão propiciava uma outra, competia aos Sudras prestar anuência e deferência aos que possuíam poder, e apenas deferência aos que não o possuíam. Desta maneira, a classe dirigente era representada por uma minoria dentro da globalidade da nobreza. Embora os Brahmanas fossem detentores do status, eram, salvo raras excepções, impedidos de ascender ao comando, no entanto, se aos Sudras era possível alcançar o poder faltava-lhes a qualificação «moral» necessária. Apenas os Satrias e os Wesias poderiam adquirir legitimidade para exercer a autoridade.


A segunda instituição na qual assentava o poder do Estado era no sistema de parentesco. As castas superiores agrupavam-se em termos de descendência agnática, ou linhagens. Eram grupos endogâmicos, em que o casamento preferencial se fazia entre primos paralelos. Deixando os grupos antigos inalterados, processo considerado como uma diferenciação, a formação de novos grupos não se baseava na cisão dos mais antigos. Porém, os antigos grupos decresciam em status à medida que os novos grupos se geravam, resultando daí a formação de uma estrutura hierárquica de grupos de descendência flexível, na qual a autoridade se baseava no parentesco. Isto é: “O sistema de títulos conferia legitimidade: [e] o sistema de parentesco dava-lhe forma social concreta” (ibid.: 43).


O clientelismo, a terceira instituição, funcionava em primeiro lugar dentro da própria dadia, alargando-se num contexto mais geral. Organizado pela casta e pelo parentesco, embora o clientelismo fosse importante dentro dos dadias, teve a sua expansão através das fronteiras das mesmas, produzindo assim uma estrutura que se espalhava irregularmente pela região. “O clientelismo fornecia um modo de forjar laços através de fronteiras fixas do status e da consanguinidade, bem como do modo de realinhar as relações dentro destas” (id. ibid.: 50).


Ocorre assim três formas de afiliações extra-grupo do parentesco: entre dadias dominantes e subordinadas, com função meramente política; entre dadias dominantes e sacerdotais, sendo a forma somente religiosa; entre dadias dominantes e a comunidade minoritária, sendo a função/forma económica.


Havia no entanto um último sustentáculo em que assentava a organização do Estado: a aliança. As alianças eram elaboradas num campo cultural e simbólico, constatando-se a existência de uma ética de boa educação que unia toda a comunidade na qual imperava a etiqueta como força de lei, e em que as más intenções surgiam envoltas em cortesia. Constantemente construídas e destruídas, estas alianças, originavam por sua vez uma ininterrupta formação de alianças.


Elaboradas também num sistema de observâncias religiosas, as alianças, processando-se ao nível de tratados formais assinados entre os principais poderes da ilha, eram o baluarte de uma ordem global. Todavia, estes tratados funcionavam de uma forma negativa, “ (…) parecem ter sido concebidos mais para codificar os pretextos com as quais as alianças podiam ser quebradas do que para estabelecer as bases da sua construção" (Geertz 1991: 62). Provocadas através de razões criadas propositadamente, de forma a que o sistema perfeito não fosse atingido: ”Em lugar de criarem unidade política, forneciam (…) um insulto delicado, uma observância ritual negligenciada, um presente inadequado ou uma vaca confiscada (…)” (ibid.: 63).


Os laços entre governantes e governados eram dispersivos, devido ao aparecimento e desaparecimento dos poderes, à constante fragmentação das classes dirigentes, porém, o aldeão continuava a sua vivência sendo explorado e vítima de opressão, mas inalterável, ou seja: “O Estado – arbitrário, cruel, (…) era visto como estando montado sobre o «comunismo patriarcal» da sociedade aldeã, alimentando-se dela, por vezes causando-lhe estragos, mas nunca a penetrando realmente” (id. ibid.:65).

- Organização política,económica e religiosa

Dentro deste contexto, o entendimento da sociedade balinesa sob o ponto de vista político, exige a necessidade de observar as formas de governo local e simultaneamente constatar a importância das principais características da sua formação: a organização política, económica e religiosa. Estas organizações separadas, mas relacionadas, assentam num amplo leque de funções governativas.

A política assentava no ordenamento dos aspectos públicos da vida da comunidade, sendo uma sociedade hierarquizada, o seu funcionamento centrava-se na entidade comunal. O subak, o «lugar», era a comunidade civil fundamental em Bali, além de ser uma unidade de residência, era também uma associação pública que regulava a vida da comunidade através de reuniões em que eram decididos todos os assuntos inerentes aos problemas comunais. Assim, a regulação da vida social era realizada pelo «lugar», proporcionando uma liberdade ao Estado que em vez de o administrar o teatraliza.


Sendo a agricultura do arroz de regadio a principal actividade camponesa de Bali, de igual modo importante era a organização económica. A função principal subak era o controlo da irrigação necessária, regulando o calendário do ciclo do cultivo através do controlo do plantio, dando oportunidade a cada comunidade o poder de gerir o seu próprio recurso. Os seus membros eram co-proprietários e como acontecia no «lugar» havia reuniões e líderes com funções de estabelecer regras, rituais comunais e obrigações de tarefas. “O lugar moldava as interacções sociais quotidianas (…) o subak organizava os recursos económicos de um grupo de camponeses” (Geertz 1991: 71).


Por último, a terceira instituição funcionava através do elemento religioso, como aglutinador e regulador do Estado, por forma a legitimar o poder. Contudo, esta instituição apesar de religiosa era organizada por leis jurídicas, sendo ao mesmo tempo um vínculo entre as formas de culto e os comportamentos sociais.


Ao relacionarmos estas três instituições verificamos que os seus membros não coincidem, apenas se interceptam e justapõem, i.e., as sociedades de irrigação poderão ter membros de várias congregações e de vários lugares, os membros dos lugares poderão ser provenientes das sociedades de irrigação e vice-versa. Em suma, estes constituintes formam o cerne político do sistema desa, i.e., a formação de todo o sistema político aldeão balinês. O sistema de irrigação como formação política, como diz Geertz:
“ (…) consistia num conjunto ascendente de camadas sociais, equilibradas, a cada nível e a cada dimensão (…). Tal como o negara estava esticado entre duas forças centrípetas do ritual de Estado e as centrífugas da estrutura do Estado, assim também o sistema subak, uma das bases sobre as quais o negara assentava, estava esticado entre a sua natureza dispersiva (…) e as exigências integradoras sobre ele exercidas pelo culto do arroz” (1991: 11).

- A força motriz da política: a procura de prestígio

“Os rituais reais (…) levavam à cena, e sob a forma de cortejo, os principais temas do pensamento político balinês: o centro é exemplar, o status é o terreno do poder, a arte de governar é uma arte teatral” (Geertz 1991: 152)

Entendida como uma sociedade assente numa organização de pequenas comunidades autónomas entre si, vista de dentro, a indonésia pré-colonial teve um desenvolvimento político assente numa difusão de principados localizados e inter-relacionados.


Não revelando uma formação de estados independentes, organizados de forma hierárquica, o poder político do Bali clássico, revela, sim, um enorme campo de laços políticos muito diferentes, que se vão constituindo uns maiores que outros, formando um todo. A formação do Estado nunca se efectuou duma só vez e num só local, mas em vários sítios e em vários alturas. Ou seja, embora existisse «estrado» de poder, “(...) as funções do governo: não estavam concentradas, mas sim dispersas; não focadas num sistema hierárquico de instituições executivas, mas sim disseminadas através de uma pluralidade de instituições, cada qual independente em alto grau, autónoma e diferentemente organizada” (ibid.: 88-89).
Tudo isto para dizer que o Estado balinês parece nunca se ter inclinado muito para a tirania, a sua governação foi sempre virada para o espectáculo, para a cerimónia, considerada a força motriz da política, todavia, era uma instituição que fomentava a desigualdade social e se orgulhava do seu status. Segundo Geertz: “Tratava-se de um Estado-teatro no qual os reis e os príncipes eram os empresários, os sacerdotes os encenadores, e os camponeses os actores, equipa cénica e público” (id. Ibid.: 25).


Perante uma sociedade que é detentora de um Estado efémero, onde se confundem momentos de centralidade, como é o caso das cerimónias fúnebres, é à volta destas que se encontra o Estado-teatro. A cerimónia, considerada como a força motriz da política da corte, o ritual não era o apoio do Estado, porém era o Estado o dispositivo para a realização do ritual das massas, logo o poder servia a pompa e não o contrário. Tanto que, o domínio do poder expresso pelo conceito Negara, traduz-se numa política controlada, na qual “ (…) a corte molda o mundo à sua volta numa aproximação (…) da sua própria perfeição” (id. ibid.: 26).


Era através da manipulação dos sentimentos, das emoções, que o poder era exercido, na medida em que as “ (…) espectaculares cremações, limagens de dentes, consagrações dos templos, peregrinações e sacrifícios de sangue, mobilizando centenas e mesmo milhares de pessoas e grandes quantidades de riqueza, não eram meios para fins políticos: eram os próprios fins, aquilo para que o Estado servia” (id. ibid.: 25). A capacidade que o rei tinha em mobilizar as grandes massas populacionais não era pela riqueza material, mas sim pelo prestígio. Tanto que a discórdia entre os vários estados quase nunca tinha a ver com acumulação de território, mas com a acumulação de prestígio.

Não será a política-teatro uma constante no universo político das nossas sociedades?
Num real que é tão imaginoso quanto o imaginário, na sociedade balinesa, a política é acção simbólica. A teatralização em torno das diversas cerimónias e rituais no Bali são um modo de expressar o poder político.


Na sociedade balinesa, como já vimos, não existia a concentração de poder, excepto no ritual fúnebre do Rei, aqui ele apresentava-se como Estado, e ao mesmo tempo mobilizador de pessoas. As formas simbólicas e teatrais revelam-nos que o ritual é poder, é este que permite ao Estado despoletar nas pessoas o desejo da ascensão do Rei, granjeando-lhe poder e dominação. “A concepção balinesa é, de facto, que a experiência sensível reproduz, ou pode fazer reproduzir através do ritual, a estrutura geral da realidade; e ao fazê-lo sustenta essa estrutura” (Geertz 1991:137). Os meios são os próprios fins. A força do simbólico está na força de enunciar que é capaz de fazer aquilo que propõe: «dizer é fazer/agir».


É nos rituais de cremação que o simbólico e o poder atingem o seu clímax, aqui a pompa está patente, a arte de governar é também arte de representar. “Uma cremação real não era um eco de uma política que acontecia algures noutro sítio. Era uma intensificação de uma política que acontecia em todos os outros sítios” (Geertz 1991: 152).


Se o objectivo destas cerimónias é a dominação, e o simbólico permite obtê-la sem recorrer à força, a sua eficácia verifica-se através dessa mesma força de mobilização. Daí que o poder político não possa viver sem o simbólico. Simbólico este que mais não é que um acto mágico, que através da palavra tem como objectivo um fim como sucesso – poder e simbólico estão assim relacionados. Porém, este tipo de poder, que está presente, está mascarado, por isso, é necessário descobri-lo, é, sublinhando Bourdieu:
“ (…) uma espécie de «círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma» - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, (....) o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (1989: 7-8).

O processo da política espectáculo é-nos indicado por Geertz, mas será que somente o encontramos em Negara? Não será a política-teatro uma constante no universo político das nossas sociedades? Como o demonstrou notavelmente Balandier:
 “ (…) todo o universo político é um palco ou de uma maneira geral um lugar dramático onde são produzidos efeitos. O que mudou particularmente desde alguns decénios são as técnicas utilizáveis para este fim cuja utilização se modifica segundo o tipo de sociedades" (1999: 98).


Ou ainda, como diz Bourdieu:
“A vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta de classes, como uma relação propriamente simbólica (…) entre representantes dando uma representação e agentes, acções e situações representadas” (1989: 175).

Será legitimo questionar os conceitos balineses através das nossas próprias concepções? Será que podemos concluir que não existiam instituições formais daquilo que numa perspectiva ocidental poderemos considerar como Estado? Ou, por outro lado, podemos entender a conceito de Negara através da apreensão das categorias nativas?

A questão do político em Negara surge através da discussão: existe ou não existe Estado? Pensamos que para além da noção de Estado encontramos uma outra questão: encontramos indivíduos possuidores de um maior engenho de «fazer» política e que simultaneamente conciliam uma maior habilidade de mobilização do público.

“O capital político é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento (…) O capital pessoal de «notoriedade» e de «popularidade» – firmado no facto de ser conhecido e reconhecido na sua pessoa (de ter um «nome», uma «reputação», etc.) e também no facto de possuir um certo número de qualificações específicas que são a condição da aquisição e da conservação de uma «boa reputação» – é frequentemente produto da reconversão de um capital de notoriedade acumulado em outros domínios (…)” (Bourdieu 1989: 187-191).

Desta forma, a capacidade de mobilização de pessoas através do cerimonial e de toda a organização política, é dinamizada, essencialmente, através do exercício da influência pessoal. Uma forma de poder e dominação carismáticos?

Se nos damos conta de uma sociedade fortemente estruturada em torno de uma comunidade local, apercebemo-nos da existência de um elemento: centralidade – idêntico ao Estado, sem contudo o ser. Aparentemente não existem organismos centrais e reguladores, se as alianças detêm também elas um carácter efémero, onde está então o Estado? A hierarquia do poder revela-se mais pela aliança do que pela vassalagem, sendo o soberano a garantia dessa mesma hierarquia. Apesar do poder não ser de forma alguma sólido, os «senhores» investem na manutenção desse poder instável. Afinal este investimento oferece-lhes mais valias, que lhes advêm do prestígio. Será este prestígio obtido independentemente dos recursos económicos?

Encontramos algumas contradições neste universo aparentemente harmonioso, nomeadamente na questão do clientelismo. Quando Geertz diz (1991: 50): “Embora funcionasse dentro do contexto geral instaurado pela casta e pelo parentesco, o clientelismo diferia de ambos pelo facto de não ser adstrito mas sim contratual, específico em vez de difuso, informal em vez de jurídico, irregular em vez de sistemático”. Perguntamos: as noções contratuais e jurídicas poderão ser pensadas separadamente?

Mas outra incompatibilidade nos assalta, a questão das hierarquias apresentasse-nos algo contraditória. Na relação soberano/sacerdote, recorrendo a Dumont, Geertz dirá:
“Na Índia, (…) o rei era o que Louis Dumont chamou uma figura mais «convencional» do que «mágico-religiosa» – um governante «despossuído de funções religiosas propriamente ditas», cujos sacerdotes o punham ritualmente em contacto com o outro mundo do mesmo modo que os seus ministros o punham em contacto, administrativamente, com este mundo. E, por fim, em Bali (…) o rei, que não era um mero eclesiarca, era o centro numinoso do mundo, e os sacerdotes eram os emblemas, os ingredientes e os gerentes da sua santidade”. (1991: 159).

Só que a argumento de Dumont sobre os temas da hierarquia e do poder exige ser discutida. Para Dumont (1992: 124), há “ (…) uma distinção absoluta entre sacerdócio e realeza. (…) O poder está, no absoluto, subordinado ao sacerdócio, ao passo que, de facto, o sacerdócio está submetido ao poder. Estatuto e poder, e consequentemente autoridade espiritual e autoridade temporal, são absolutamente distintos".

A visão de Dumont é uma visão tradicional sobre a Índia, tem um ponto de vista conformista, que vai de encontro ao senso comum ocidental. A complexa estrutura da sociedade Indiana não nos permite «aceitar» os arranjos estruturais hierárquicos teorizados por Dumont[4]. A realidade etnográfica não é aquilo que nós queríamos que ele fosse. Transparece no texto de Dumont uma apropriação dos factos etnográficos da sociedade indiana para justificar a suas auto-referências. É nas castas que a problemática da hierarquia encontra o seu epicentro, o homo hierarchicus ao longo do texto procura sistematizar através dos dados etnográficos aludidos, esta questão – a das castas. Só que situações de carácter etnográfico que trazemos aqui como exemplo relativizam as perspectivas de Dumont:
“ (…) no sistema de castas, é relativamente inquestionável a posição dos brâmanes e dos intocáveis. Na zona média do sistema, cada grupo social produz «argumentos» que pretendem provar a superioridade do seu próprio estatuto. O discurso das diferentes castas e os argumentos produzidos cruzam-se numa rede complexa de oposições, num jogo incessante de identidades relativas. Não existem, aqui, quadros definitivos, nem posições estáveis. De aldeia para aldeia, de região para região, vemos alterar-se a morfologia social: os grupos em presença raramente são os mesmos, modificando-se, portanto, as relações e os critérios que permitem codificar as diferenças” (Gomes da Silva 1990: 94-95).

Estamos perante elementos que se consubstanciam, há como que uma situação de equilíbrio onde a realidade faz esta ligação equilibrada entre semelhante e diferente. Como nos diz Madeleine Biardeau, (1972: 28):
“(…) la hiérarchie sociale est définie par un ordre purement extrinsèque à ses membres. Le brâhmane n’est pas supérieur par nature, mais seulement par position. Il peut évidement déchoir de sa caste en agissant contrairement à ses devoirs, mais cela fera de lui un «hors-caste» et non un Ksatriya, ni un sûdra”.


Neste contexto, existe uma «linha» que os leva de um ao outro. São semelhantes e distintos ao mesmo tempo, há uma polaridade versus continuidade. “Colocados, respectivamente, nos níveis superior e inferior da escala dos estatutos, brâmanes e intocáveis (puros/impuros) delimitam um espaço hierárquico que Dumont recusa conceber como uma «cadeia de poderes sobrepostos" (Gomes da Silva 1994:195).

Quaisquer que sejam as contendas há que perguntar: se o poder existe como é que ele se resolve? Dependendo de quê? De quê ou de quem está ele dependente? É possível hierarquizar de uma forma tão radicalmente rígida como o fazem Geertz e Dumont? A construção teórica mergulha na contradição. Encontramos em Geertz o arrastamento das suas postulações.


Algumas notas conclusivas

Certas questões na monografia Negara – O Estado Teatro do Século XIX caracterizam o autor, nomeadamente a tentativa de isolar os elementos importantes da acção simbólica que cercam o Estado-teatro. No seu estudo interpretativo, que representa um esforço para aceitar a diversidade entre as várias maneiras que os seres humanos têm de construir as suas vidas, no processo de vivê-las, Geertz conclui que as cerimónias, os ritos e os espectáculos de Estado são o próprio Estado, os quais produzem um corte na concepção tradicional das relações entre o mito e a realidade, dando ênfase ao simbolismo de toda a acção política. Mas, ao longo do seu texto damo-nos conta de várias ambiguidades. Apesar do desajustamento encontrado, não podemos, todavia, deixar de não aceitar a contribuição de Geertz como ponto de partida para a discussão do inúmeros trabalhos, deixando o seu texto, de certa forma, problemas em aberto, até porque, como o próprio autor diz, o seu estudo propõe-se “ (…) a poder ser lido de vários modos” (Geertz 1991: 10).


Classificar, hierarquizar, depende sempre do observador, depende de um conjunto de critérios que para além de não serem eternos sofrem alterações permanentes, pois trata-se de domínios instáveis – os antropólogos apercebem-se das dificuldades.



Bibliografia
BALANDIER, E. (1985) -"Le politique des Anthropologues" in Grawitz, M., Traité de Sciences Politiques, Tome I. Paris: Jean Leca, pp. 309-333.
BALANDIER, Georges (1999 [1992]) - O poder em Cena. Coimbra : Minerva.
BIARDEAU, Madeleine (1972) - L'Hindouisme - Anthropologie d'une Civilisation. Paris: Flammarion.
BOURDIEU, Pierre (1989) – “Sobre o poder simbólico”; “A representação política - Elementos para uma teoria do campo político”, in O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, pp. 7-16 e 163-207.
DUMONT, Louis (1992 [1966]) – Homo hierarchicus – O sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
GEERTZ, Clifford (1989 [1973]) – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara.
--------------------- (1992 [1980]) - Negara. O Estado Teatro do Século XIX. Lisboa: Difel.
GOMES DA SILVA, José Carlos (1994) – A Identidade Roubada – Ensaios de Antropologia Social. Lisboa: Gradiva.


[1] Apaixonante no sentido do gosto pronunciado que sinto pela política, pelo seu estudo.

[2] A cultura, para Geertz, fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar o que cada um efectivamente se torna. Com Geertz (1989: 64): “Tornar-se humano é tornar-se individual e nós nos tornamos individuais sob a direcção dos padrões culturais, sistemas de significação criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objectivo e direcção às nossas vidas”. Ou seja, a cultura é uma teia de significados. O olhar humano, através da «lente» da cultura percebe significados e estes significados são sempre distintos de uma para a outra sociedade. O que Geertz propõe é uma definição de cultura a partir da noção de homem, numa tentativa de resolver o paradoxo entra a ideia de uma imensa variedade cultural em contraste com a ideia de uma espécie humana única.
[3] O equivalente em simultâneo por cidade, capital Estado e reino. No seu sentido mais lato, Negara, designa civilização, alta cultura da cidade e sistema de autoridade política superior da cidade. No seu oposto, desa, significa com igual flexibilidade, campo, região, aldeia ou área governada, ou seja, desa define o mundo do povoado rural, do súbdito político: o povo. “Entre estes dois pólos, negara e desa, definidos por contraste mútuo, desenvolveu-se a formação política clássica, a qual, no contexto geral da cosmologia índica transplantada, assumiu a sua forma distintiva, para não dizer peculiar” (Geertz 1991: 14).
[4] Classificar a(s) sociedade(s) desta ou daquela maneira parece-nos completamente algo que soa a falso. Basta olharmos para o sistema complexa da sociedade indiana para nos darmos conta que estamos longe da simplicidade. "A reflexão de Louis Dumont sobre os temas da hierarquia e do poder exige ser discutida neste contexto geral. Assente na oposição puro/impuro, a hierarquia, tal como Dumont a apresenta a partir do sistema indiano das castas (jâti) e dos varnas, é definida como uma questão puramente religiosa. Deste ponto de vista, opõe-se ao poder - um poder laicizado (talvez no período védico segundo o autor)" (Gomes da Silva 1994:194-195). O ângulo pelo qual Dumont reflecte no homo hierarchicus sobre o puro/impuro é definido como uma questão puramente religiosa. "Colocados respectivamente, nos níveis superior e inferior da escala dos estatutos, brâmanes e intocáveis (puros/impuros) delimitam um espaço hierárquico que Dumont recusa conceber como uma «cadeia de poderes sobrepostos»" (ibid.: 195). O puro e o impuro é colocado por Dumont num sentido descendente e irreversível, ou seja, em «superiores-puros» e «inferiores-impuros». Esta questão levanta inúmeros problemas se atendermos aos dados etnográficos recolhidos por outros investigadores, tais com Gomes da Silva, Madeleine Biardeau, entre outros.

Fernando Baleiras