Posfácio ao Livro: O Passeio de Deus

Egocêntrico eu sou:
o prazer de um livro é quase sempre egocêntrico.
Implica gosto, prazer, posse. Editar, pelo contrário,
é altruísta implica gosto e também risco.

Diogo Ramada Couto


Conferindo-me o poder insanável da liberdade de espírito, a leitura sempre foi e será o meu vício predilecto, foi nela que cresci, foi ela que sempre me deu ensejo de escrever. Ler implica tempo, cumplicidade, abertura e predisposição, mas acima de tudo espírito crítico e alguma distanciação. Sinto este livro como uma linha transitória, expressionista, numa mistura doce mas furiosa, atravessando fragilidades vivenciais imbuídas de jogos sedutores onde a grandeza e a pequenez humana estão presentes nas experiências pessoais.

Esta explanação de cunho conclusivo colocada nesta obra, pretende somente, apreender essa procura da «consciência mais elevada das coisas». Surpreendendo-me pelo carácter surrealista em que nos faz atravessar por uma mescla de liberdade, potenciando a fantasia e a inteligência. Como tivesse desaparecido o “normal” (seja lá isso o que for) controlo da selectividade do pensamento – uma espécie de Louco Sagrado.

A fronteira entre o sono e a vigília parece desaparecer e o que emerge é uma espécie de sonho acordado onde proliferam fronteiras, associações e símbolos, os quais vêm enredar-se nas percepções da mente desperta. Daí, a acusação de poeta: O que virtualmente me dou conta é de que todos os pensamentos, todas as palavras, todas as emoções, todas as sensações, em suma, todos os cambiantes estão aqui carregados de roupagens sedutoras e deparadoras que tiram proveito dessas nostalgias “desinibidoras” e jocosas. Trata-se de uma sensibilidade activa, grandiosa, sublime até. Sendo que muitas das vezes estes cambiantes se tornam inquietantes, excêntricos, bizarros, únicos.

Ao lermos O Passeio de Deus, somos envolvidos nesse tirar proveito, esfomeado e sedento que acalenta a esperança que o meu anfitrião oferece no mínimo gesto da sua narrativa. A minha esperança foi alcançada da melhor maneira, com uma fausta refeição regada com deliciosos vinhos. Depois daquela entrada poética regada Da Fonte quando diz: Há quem nasça no por-aqui / para provar aos distraídos / aos confusos e aos materialmente ocupados / que a Fonte existe, / que a Fonte está em Nós. Assim, num estado de espírito caleidoscópio e multiforme, com essa magia instintiva, tão cara à antropologia, essa telepatia capaz de nos fazer participar numa comunicação sem palavras (dedução, apreensão – as não verbalizações), deparo-mo com o Poema do recomeço. A Barata. Aqui brinda-me a exclamação, o clamor… Desconheço um qualquer tratado ou ensaio / sobre a vida das baratas e é pena (!). Depois vem aquele repasto desta vez regado com uma deliciosa reserva, carnuda, macia e aveludada, este Do brilho do Tempo, tinha-me conquistado. Os efeitos soporíferos já se faziam sentir: Não há nada de novo(!), / apenas a mudança / de um ciclo para outro. / Tudo volta a ser como foi / sem nunca ser como foi. (…) Lembro a criança que fomos. / O Tempo hoje é criança / e sei que brilha intensamente / como nunca brilhou. / O que é que tu és Tempo (?!). Esta é a questão filosófica mais pertinente e que me revela não as gastas questões do Para Onde Vou? O Que Faço Aqui? Mas essa interrogação TEMPO!!!

O que é o Tempo? Sempre me dirigi a esta pergunta. O pensamento de um tempo fora da nossa existência é insuportável. Sobre esta alegação, quantas vezes me dirigi a esses espaços siderais para me furtar a complicações supérfluas afastando-me desse lugar com o nome de Terra. Percepciono essa beleza contemplativa de tudo o que tocamos, o que vemos, o que sentimos e simultaneamente, paradoxalmente, sentimo-nos acanhados neste sistema. E continuamos no infindável dos tempos à procura do grande desenhador. Quem fabrica a bússola para a navegação? No Exorcismo depressivo, encontramos o esconjurar perturbador da fera humana que somos todos nós. Todos aqueles que «inalam» este alcançar, esta vontade (por razões mágicas, religiosas, místicas, psicológicas ou antropológicas), sabem que se processa uma sobreactividade mental, tocando por vezes as raias Huxleynianas da liberação. Somos tocados por música com palavras.

Ainda no Exorcismo depressivo, leva-me a pensar que aquilo que pessoas têm em comum é mais forte do que aquilo que as separa: Não te esqueças / que serás sempre / a minha semântica para tudo. Estamos diante da ampola da produção poética. Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como ele é, infinito. Só que o laço que une o significante ao significado é arbitrário. O palácio do êxtase apercebe-se da insuficiência perante a pluralidade do mundo que toca as raias do agnosticismo. Porém, o pensamento emancipa-se, a maturidade intelectual pergunta-se se é ateu, panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre-pensador. Desconfia-se estar perto da gnose no sentido antropológico do termo. Existência-Consciência-Beatitude não são puras insinuações, encontramos uma ardente peculiaridade com a mente que elabora, se preocupa, mais do que com os lugares, a existência e o significado protegendo-se de ser esmagado pelo nome “este mundo” sabendo-se vítima do saber reduzido que temos do universo conhecido. Basta lembrar, outra vez no Exorcismo depressivo quando diz: Espera-me nas estrelas / e perdoa o Tempo. Afinal só nos resta Impaciência. É preciso comer a cor-azul do céu / e fazer a digestão / durante a Eternidade.

São os pequenos nadas que fazem a diferença. Em Todo, lá fora e aqui dentro, o ser humano é capaz de luxos biológicos. Não só o cardápio como a própria refeição sugere a elegância de dar conta que cada forma de cultura é a marca do homem, é igualmente respeitável e “sagrada” seja em que lugar for: Ganhar será o Todo / pois nunca se ganha. / O contrário não existe, / apenas a relação. Estamos perante uma postura antropológica. Todavia, não há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua o seu conteúdo ético. Tal como nas artes plásticas, quem propõe é o assunto, mas quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista. Em Terapia poética realiza-se a essência física da poesia bela e valiosa: O poema deverá / ter sempre / o efeito de um narcótico.

Projectando as suas imperfeições e obsessões, com todas as preciosidades e paixões que o homem vai usufruindo nos jardins plantados sociais, por muito arrebate ou santuário inaudito que uma sociedade nos ofereça verifica-se essa dor absurda de nunca atingir em pleno a principesca felicidade. Da Morte, encontramos uma componente visionária aterradora que se vendia como perfeita, plena, sem conflitos. Morte, sexo, dinheiro e religião são questões essenciais que preocupam o ser humano in lo tempore.

As palavras evocativas empregadas pelos poetas têm por vezes essa magia de produzir imagens na minha mente, numa proporção hipnótica de vida independente. Numa ambivalência entre a magia da proximidade e o encantamento da distância, numa ironia zombatória das pretensões humanas de estabelecer normas para tudo, mesmo para a conduta dos processos cósmicos Da Filosofia ou a grande-arte da “masturbação” é-nos fácil apontar a sublime tautologia: sou o que sou. Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros.

Cada espírito em sua prisão corpórea vai acumulando informações, experiências desses universos pessoais de génios e demónios, cada qual com o seu continente temático cheio de dramas, parábolas, profecias e outros xamanismos, julgando sempre atingirem o palácio da sabedoria. Neste cenário e perante tanta pluralidade, apercebendo-se da insuficiência e da ausência de respostas eis que surge a exclamação: Mas que grandes-aprendizes de Infelicidade! Está a dizer-nos: chega! O tempo deve parar. Encontro-me numa eternidade insaciável de uma eterna e omnipresente ausência e no entanto numa existência abruptamente presente. Aqui, o prazer, é a tarefa imediata a satisfazer os sentidos, permanecendo notavelmente estáveis, independentemente de suas idiossincrasias psicológicas.

Numa exaltação irónica mas genuína percorre-se quilómetros de literatura desde o pensador francês, Foulcaut com As palavras e as coisas,[1] de 1966, sucesso de vendas que tornou Foucault conhecido no mundo inteiro e alvo de ferrenhas críticas. Acusado de assassinar a história, Foucault respondeu em tom irónico: "não se assassina a história, mas assassinar a história dos filósofos, esta sim eu quero assassinar". Notamos aqui um efeito de repulsa por este assumo. Mas o efeito de cavalo de corrida aponta-nos a próxima emoção de velocidade: Ricouer[2], foi um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. A dialéctica entre explicar e compreender, para Ricoeur, não constituem os pólos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo complexo: a interpretação. O ponto crucial e daí: Andava sempre em conflito com as Interpretações. Temos os Teóricos de Frankfurt[3], Marcuse, Adorno, Horkheimer, Benjamin e Habermas.

É, como diz o autor: Estou cansado disto. / Por agora vou alinhar com o Marcuse. / Ele e eu aconselhamos: / sejam livres! Eu também alinho com Marcuse ou não fosse a sua notável influência nas insurreições anti-bélicas e nas revoltas estudantis de 1968 e 1969. Não posso deixar de tecer mais umas palvras acerca desse legítimo pensador alemão que foi Herbert Marcuse[4]. Como pensador, Marcuse é, acima de tudo, hegeliano, ou seja, radicalmente dialéctico e crítico. Em Freud, Marcuse encontra a possibilidade do homem ser feliz, isto é, para Marcuse, o princípio da realidade resulta de condições históricas específicas. Ou seja, a infelicidade é um fenómeno inseparável de determinadas situações sociais. Assim sendo, quando atingirmos a situação social correcta, o homem poderia ser feliz. Quando será? No “Império da Razão”. Em Eros e Civilização Marcuse nos mostrará que o homem guarda lembranças profundas de uma possibilidade da felicidade, lembrança presente nos mitos de Orfeu e Narciso.

Agora num prisma peculiar temos como que uma mediação entre o humano e o divino. Impelido por uma intensificação de ditosa participação no limiar da consciência, somos levados, provocados, estranhamente transfigurados a uma gradual-mente presença de sensações sucessivas. Ditosas paixões, radiantes imagens de luz, memórias eróticas da alma.


Como um lá fora e aqui dentro harmonioso, urgente, infinitamente tranquilizador. Mas também ávido. Também eu no Aprendiz de Alquimia e numa súbita e transcorrida eternidade dou-me conta do contingente, do condicional e num eclipse monumental: Diz-me, meu glorioso mestre, do grande-SEGREDO. Sou o teu curioso e desnorteado aprendiz de Alquimia (Aforismo 30). Fico estarrecido e aquela opacidade perturba-me, porém, no meio deste júbilo de haver recuperado a lembrança das coisas, esse conhecimento de uma identidade capaz de memorar essa consciência da minha existência, fico perplexo.

O PASSEIO DE DEUS insere-se numa contemplação estética que me transporta para uma passagem de um dos livros de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos em que diz: «a contemplação proporciona ao homem o único favor que ele sabe merecer (…) durante os breves intervalos em que o nosso espírito consente em interromper o nosso labor de cortiço, em apreender a essência do que foi e continua a ser, para aquém do pensamento e para além da sociedade: na contemplação dum mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume, mais sábio que os nossos livros, respirando na corola dum lírio; ou no piscar de olhos carregados de paciência, de serenidade e de perdão recíproco que um entendimento involuntário permite às vezes trocar com um gato». Poeta e visionário, Ângelo Rodrigues, reintegra essa procura, essa demanda que desbanaliza a vida experimentando um fogoso procurar poético do aforismo, apóstolo e provocador do estabelecido a fim de por a descoberto o espírito do tempo.

[1] A obra de Michel Foucault até hoje incomoda os ortodoxos da cultura, principalmente os de história e linguagem. Pensador de visão ampla e serena conferiu em suas observações sobre o homem, a sociedade e a ciência, caminhos que desconstruíram paradigmas individuais e colectivos na academia ocidental. Foucault em suas perspectivas pós-estruturalistas construiu, ou melhor, desconstruiu um legado de certezas e verdades presentes na academia a qual teve na religião e na ciência positivista o seu porto de ancoragem.
[2] Paul Ricouer fez uma importante obra de filosofia política. Ricoeur participou em debates sobre a Linguística, a Psicanálise, o Estruturalismo e a Hermenêutica, com um interesse particular pelos textos sagrados do Cristianismo. Cristão e antitotalitarista, notabilizou-se pela oposição à guerra da Argélia (1954-1962) e à da Bósnia, em 1992.
[3] Este grupo emergiu no Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt da Universidade de Frankfurt-am-Main na Alemanha. Propõem a teoria como lugar da autocrítica do esclarecimento e de visualização das acções de dominação social, visando não permitir a reprodução constante desta dominação. Com a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, os membros do Instituto, na sua maioria judeus, migraram para Genebra, depois Paris e finalmente, para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque. A primeira obra colectiva dos frankfurtianos é os Estudos sobre Autoridade e Família, escritos em Paris, onde estes fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das sociedades burguesas contemporâneas. Nestes estudos, os filósofos põem em questão a capacidade das classes trabalhadoras em levar a cabo transformações sociais importantes. Esta desconfiança, que os afasta progressivamente do marxismo "operário". Mais tarde, com Marcuse inicia-se uma frente de trabalho que associa a Teoria Crítica da Sociedade à Psicanálise. Marcuse, que permanece nos EUA após o retorno do Instituto para a Alemanha em 1948, leva a que Adorno continue o trabalho iniciado na Dialéctica do Esclarecimento, de reformulação dialéctica da razão ocidental, em sua Dialéctica Negativa, sendo considerado ainda hoje, o mais importante dos filósofos da Escola. Com a sua morte, começa o que alguns chamam de segundo período da Escola de Frankfurt, tendo como principal prenunciador, o antes assistente de Adorno e depois, seu crítico mais ferrenho, Habermas.
[4] Marcuse foi o mais significativo dos frankfurtianos, do ponto de vista das repercussões práticas de seu trabalho teórico, já que teve influência notável nas insurreições anti-bélicas e nas revoltas estudantis de 1968 e 1969.

Fernando Baleiras
Agosto de 2007

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto sobre um livro que vale a pena ler.

Anónimo disse...

Foucault?

A mentira é serva da conveniência
Já a verdade é amo da consciência

(livro dos provérbios)