"Estes santíssimos padres em Cristo, e vigários de Cristo (…) Julgam defender apostolicamente a Igreja, esposa de Cristo, quando despedaçam aqueles a quem chamam inimigos. Como se os mais perniciosos inimigos da Igreja não fossem os pontífices ímpios, que fazem esquecer Cristo quer pelo silêncio, quer pelas leis traficantes, quer pelas interpretações adúlteras, quer pela vida pestilenta que levam."
Erasmo de Roterdão
Foi ontem. Hoje a religião deixou há muito tempo de ser a instância que assegura com os deuses a regulação das coisas e a ordem entre os homens.
Compreende-se que haja muito quem pense que, com Nietzsche, Deus morreu. Mas também não faltam avós que dizem à sua filha, falando da neta: «Não vais deixar que a tua filha se case sem passar pela Igreja». O céu dos homens continua durante muito tempo iluminado pela luz das estrelas mortas.
O catolicismo está longe de ser uma pura religião de salvação. O catolicismo é dotado de um aparelho de poder, poder este que se bate pelo seu próprio poder, mesmo que só tenha mudado de cara e de argumentos. Esquecemos muitas vezes com grande facilidade que a religião não é nem doutrina nem teologia, ou seja, é um discurso cuja coerência é incerta. Sabemos que a ordem, o poder, a lei, são valores chaves do pensamento jurídico e político. O respeito pela pessoa humana deve tanto aos juristas como aos teólogos.
A laicidade não proíbe as Igrejas de se interessarem pelos grandes problemas da sociedade. Com efeito, a Igreja cristã não se apresenta na Idade Média como uma pura instância espiritual. Feita religião do Império a partir de Constantino, e associada ao poder imperial, o seu poder aumentará ainda mais quando este mesmo Império fica enfraquecido e entra em declínio. A Igreja aproveitou-se desta situação para aumentar o seu poder e construir o seu próprio império. Foi aquilo a que Delumeau chamou a «derrapagem» da Igreja (1977: 50): "O cristianismo oficial derrapou a partir da época constantiniana". O recurso à Igreja como um poder alternativo num longo período de crise implica necessariamente uma igreja diferente.
Nos alvores do século XVI, a contradição que a Igreja transportava consigo torna-se insustentável, a história de um papa como Gregório, o Grande, ou de um bispo como Martinho de Tours mostra bem que estava fora de causa que a Igreja se limitasse ao domínio da «espiritualidade».
O Papa como Vigário de Cristo, não hesitava em usar os seus poderes de excomunhão para promover as ambições da família ou consolidar o seu poderio territorial. Dito isto, a desconfiança da Igreja em relação ao comércio não impedira o desenvolvimento das trocas comerciais, "a Igreja promulgou (…) toda uma série de sanções. A princípio apenas espirituais (…) em seguida temporais” (Le Goff 1982: 60). Mas condenações da usura não foram levadas muito a sério pela Igreja, cedo não hesita em pedir dinheiro a juros, " (…) o juro pago pelo que pedia emprestado tanto era apresentado como dádiva voluntária, como podia tomar a forma duma multa paga na expiração do prazo de reembolso, fixado expressamente para uma data demasiado próxima (…)" (Le Goff 1982: 60).
Fosse o que fosse, aquilo que os teólogos pensassem acerca da usura e dos negócios era cada vez menos relevante para o que estava a acontecer na vida económica, "a noção de utilidade e de necessidade dos mercadores (…) veio a coroar a evolução da doutrina da Igreja e lhes valeu o direito definitivo à cidadania na sociedade cristã medieval" (Le Goff 1982: 62). Posto isto, o sentido de aventura ia conduzir facetas assombrosas da actividade humana. Foi devido aos mercadores que se pode travar e expandir a doutrina ocidental.
A unidade do cristianismo foi efectivamente quebrada. O grande século XVI introduziu uma nova era de política do poder, de grandes guerras combatidas com novas armas e financiadas pelas riquezas do comércio.
Registou-se por toda a parte um respeito, muitas vezes genuíno, de violentas paixões, de profundas emoções, em que se gladiavam os mentores da fé. Mas, apesar de tudo isso, registou-se também um desvio marcado por outra escala de valores, em direcção ao secularismo. As guerras religiosas com demasiada frequência encobriam desígnios puramente mercantis. Os Turcos que "(…) empreenderam a conquista da Grécia em 1422" (AAVV 1996: 66), e que vieram a fundar comunidades mercantis, fizeram os cristãos gregos dispersaram-se em direcção ao ocidente, em consequência das guerras e conquistas turcas ocorridas. "A função da autoridade desprendida da divindade(…) é a gestão da empresa produtiva da força de trabalho e de bens que circulam como mercadorias; de facto, a expansão cristã do Ocidente a partir do século XVI, subordinou o conjunto dos povos colonizados à teoria do oikos grego, que os europeus haviam integrado na sua incipiente teoria económica inscrita na teologia" (Iturra: 1991: 25).
Várias são as teorias sobre a origem do fenómeno religioso, elaboradas por antropólogos e outros cientistas, mas aquela que aqui nos interessa é a de Iturra (1991: 14), "A religião é uma teoria construída através do tempo que tenta, ou trata, de dar direcção às relações especiais. Esta construção é também feita pelo investimento da experiência num modelo central - a divindade - que sintetiza tudo aquilo que o homem precisa ter enquanto vive”. Que queiramos quer não, um dos objectivos da doutrina são os recursos, sem os quais é impossível viver. A resposta de Vasco da Gama, quando lhe perguntaram em Calecut o que pretendia - «ouro, cristãos e especiarias» - esconde metade da realidade. Nas suas motivações estava a curiosidade, o espanto que as novas paragens ofereciam, mas o interesse principal eram os recursos extra-europeus, que para além de serem numerosos revelavam-se variados e baratos.
A grande meta dos eruditos, é, sem dúvida, o controle e gestão dos bens e meios de produção. Assim sendo, há que ver o que interessa e o que não interessa ao povo saber. Isto é, se o mundo foi criado por Deus, tudo o que existe tem uma finalidade, nada foi criado ao acaso, assim, existe uma série de tabus a circundar os recursos, os quais têm que ser respeitados. Esta forma ideológica de controle das pessoas, é sem dúvida fantástica, e os eruditos, encostados aos dogmas, vão assim, controlando e tirando proveito dos «seus recursos». O homem deve então aceitar a doutrina que o ensina. Como diz Iturra (1991: 26): "A subordinação à paternidade divina é a garantia da continuidade do saber". Ou seja, a doutrina estabelece condutas, onde são criadas interdições e prescrições, em que o homem para se sentir bem, tem que praticar e obedecer a essas mesmas condutas. Caso desobedeça, corre o risco de cometer o pecado[1] e de desagradar a Deus ficando entregue a si próprio, i.e., fica fora da ordem social, perde a protecção.
O homem é então uma construção social, porque a doutrina concebe a ordem social, e dita as regras, se ele não cumpre a sua identidade é considerada desviante, ou seja, o indivíduo fica submerso na sociedade, esta por sua vez anula a sua individualidade através das suas leis. "Do que se trata, em síntese, é da sistematização de uma prática de subordinação do individual ao social sobre o qual se tem construído todo um poder. O poder provém da força da factualidade de construção do social" (Iturra 1989: 62).
As mobilidades sociais, a erosão económica, a ascensão material e social dos grupos mercantis não poderia deixar de criar tensões. Neste contexto a Igreja tornara-se um dos mecanismos fundamentais de preservação do poder nobiliárquico, não só pelo seu aspecto dito mais visível, na produção ideológica e na repressão dos que questionavam o seu monopólio, como, e principalmente, por constituir a instituição depositária dos excedentes nobiliárquicos que resultavam da instituição do morgadio. A nobreza, ao empurrar os filhos segundos para os conventos, matava dois coelhos com uma só cajadada: por um lado reforçava o seu poder na terra, por outro, garantia no céu a salvação eterna.
Como diz Weber (1996: 32), "toda essa contradição entre alheamento do mundo, ascese e devoção religiosa, por um lado, e participação na actividade capitalista, por outro, se poderá afinal transformar numa íntima relação de afinidade". O móbil e o peso da rede de manutenção eclesiástica sublinha a valoração do económico que se conexionam numa ética marcada pelo apreço do trabalho, ou daquilo que constitui o tipo de problemática apontado com Max Weber sobre o «espírito do capitalismo». Ou seja, o aparecimento dos sinais de mentalidade em que há uma propensão á valoração económica e a sua subsequente incorporação na escala de valores.
A religião e a economia têm uma conexão mútua e inseparável. “ (...) o pensamento económico tem usado ideias religiosas para mobilizar o processo de vida; no interior do grupo que trabalha trabalham ideias recolhidas pelo grupo, que dele se reproduzem e que lhe entregam saber e meios. O que permite retomar a definição de Firth (1959), (…) a religião é a preocupação do homem com o social e os seus objectivos (…) uma forma que a Igreja usa para afirmar o seu poder” (Iturra, 1991: 20-21). O declínio da consciência humana imediata do Céu e do Inferno, a diminuição do sentimento da responsabilidade do homem pelos pecados do mundo, tiveram o seu corolário no aumento do conforto material, na sensualidade declarada, nas representações seculares da arte, na música, na literatura, em suma, na convicção de que o homem podia realizar aquilo que quisesse neste mundo, sem o «fantasma» do divino.
O trabalho faz parte da vida do homem. É em função do trabalho que ele organiza e faz projectos para a sua vida e a produção que retira desse trabalho regulamenta, o casamento, o número de filhos, a herança e as relações sociais.
Existe sempre um processo racional da organização de estratégias para a produção que varia consoante os contextos históricos. A racionalização trás consigo, no entanto, um dado invariável que é o facto de todas as relações sociais, inclusive as de parentesco, serem determinadas pela classificação do trabalho. Não quer isto dizer que os sentimentos não existam, o que acontece é que as emoções são exploradas como estratégias para a produção e conduzidas para este fim. E aquilo que nos parece ser algo de natural é o produto de um cálculo racional. "Se o trabalho é a colaboração entre os homens, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxonomia e uma garantia? (…) A garantia de tudo isto está na criação de transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá na terra (…) A história recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo uma concepção de trabalho que se entende primeiro e se faz depois - alma e corpo - mostra as consequências da transgressão" (Iturra: 1991: 77-78).
Se relacionarmos tudo isto como o desenvolvimento económico, estivemos em presença de um espantoso alargamento dos horizontes do homem, do domínio económico originado com o descobrimento de novos continentes.
Porque será que o Ocidente precisa de espalhar a sua doutrina? A teoria da religião tem princípios económicos. É evidente que a doutrina tem que ser espalhada. A racionalidade, o que será a racionalidade? Encontramos mil definições. Mas há uma definição que é bem mais natural para nós. É uma ideia oriunda dos palestinianos e dos gregos que o ser humano tem uma razão natural.
Segundo a doutrina da Igreja, pela razão natural o homem pode conhecer a Deus pelas suas obras. Faz dois mil anos que esta ideia nos governa. Passa-se de uma metáfora ao facto. Mysterium tremendum. No entanto o " mistério das relações entre igualdade e desigualdade (…) tinha fundamentos religiosos. A desigualdade pode ser justificada à luz das Escrituras. O Espírito «sopra onde quer». A noção social de Aliança implica a distinção de um escol de puros e, consequentemente, desigualdade. (…) A bem dizer, podem encontrar-se na Bíblia tantas justificações para a igualdade como para a desigualdade. (…) A igualdade natural entre os homens, perfilhada pelo cristianismo, não contradiz a estrutura hierárquica das «ordens» na sociedade. Mas o Direito Natural assenta no postulado de que existe uma lei universal, válida para todos os homens e com fundamento na própria natureza do homem. (…) Os homens são considerados com a capacidade de poder descobrir a lei natural exclusivamente pelas luzes da razão" (AAVV 1996: 515).
A racionalidade é-nos natural desde que nós a reconheçamos como uma divindade. No entanto, essa racionalidade não existe só por nossa causa. Porém, a doutrina é uma metáfora, porque diz que a razão existe, uma vez que diz que nos reconhecemos a obra de Deus. Ora, nós bebemos porque temos água e frequentemente dizemos: «graças a Deus à água», ou seja, é uma constante metáfora da nossa racionalidade - não pode ser interpretado por ninguém uma revelação divina, portanto estamos a falar de racionalidade. Desejar a razão é um sentimento escrito no coração e na mente do homem. Pela razão natural, reconhece-se que o ser humano tem razão.
É natural que nós no quotidiano usemos o conceito, tal como a doutrina diz que se procura a felicidade, as pessoas também procuram o lucro, ou seja, têm que produzir para a sua felicidade. Será que foi isto que viram os portugueses que foram para a Índia?
Chegados a outras paragens, aos europeus, era necessário espalhar a doutrina, porque só assim se podiam fazer entender, imbuindo a outros povos os seus conceitos e promover os seus intentos.
Será que portugueses ao chegaram à Índia não reconheceram as suas formas racionais naturais? A objectividade racional, a utilidade procurada assenta num quadro em que a persuasão, a coerção, a imposição da dita fé católica no mundo não europeu revelou um grande número de convertidos ao catolicismo. E porquê? Pelo que atrás já foi dito não temos dificuldade de vislumbrar as causas. O missionário dominicano Bartolomeu de Las Casas na sua Brevíssima Relação da Doutrinação dos Índios, dá-nos conta de como os Espanhóis perpetraram na América do Sul vis atrocidades aos nativos. Estes viviam ainda no Neolítico, as suas armas compunham-se de lanças, fisgas e fundas. Os espanhóis chegaram lá e atacaram-nos com "raios por todo o lado".
O monoteísmo ocidental seguro da excelência da revelação que os fundamenta, exibem altivamente a sua superioridade, pudera! Para além da exegese dos ritos, traziam canhões espingardas, um poder bélico altamente destruidor. Os canhões, as espingardas, causaram estragos que eles nunca tinham visto, entenderam que Deus estava zangado com eles e fugiram. O mesmo é dizer que se tratava de um poder com o qual era preciso estabelecer as melhores relações. O conquistador, as suas formas, de pensar são muito diferentes. Temos aqui duas formas de entender a realidade. O efeito é devastador.
"À parte da violência directa, houve desastradas tentativas de conversão por atacado por parte dos pioneiros espanhóis na América do Sul, os «conquistadores». (…) estes soldados-exploradores baptizavam frequentemente tribos inteiras em massa (…) quando foi estabelecido na América do Sul o sistema de cativeiro chamado encomienda, como forma de escravidão estatal, os nativos foram forçados a aceitar o catolicismo. (…) quer isto dizer que os métodos espanhóis, na maior parte das vezes, aniquilavam mais do que convertiam os povos nativos (…) associando a nova religião á conquista, à servidão, à exploração e à desumanidade" (Mullett 1984: 60).
Os contactos, ora violentos, ora pacíficos, que a Península Ibérica perpetuou, tanto nos povos americanos, como nos africanos e asiáticos, não nos podemos esquecer que apesar de violentos e destruidores os confrontos na América espanhola, nunca deram lugar à supressão total das etnias e civilizações anteriores, como aconteceu nas regiões colonizadas, dominadas pelo imperialismo europeu do período de expansão económica, conduzida sobretudo por países de Europa do Norte.
De que vivem as Igrejas? Onde vão elas buscar as suas finanças? O caso das indulgências não passa de um indicador. Temos uma Igreja de que não é fácil dizer se tenta dar remédio para a angústia dos homens, ou se a cultiva pelos lucros que essa angústia dá, eu diria faz as duas. A Igreja vive do trabalho alheio.
Deslizando através do ritual, da evocação do poder-outro, do poder divino, em nome do amor, da justiça ou da liberdade, procura não ser derrubada através de construções, contradizendo-se " (…) muitas vezes (sic et non sim e não), e que, como [já] dizia Alain de Lille no final do séc. XII, "as autoridades têm um nariz de cera" - maleável ao gosto dos exegetas e dos utentes" (Le Goff 1987: 22).
É assim que se espalha a doutrina. A expansão da doutrina é substituir a racionalidade natural pelo etnocentrismo racional europeu, que acredita na divindade, na morte e na ressurreição. Essa necessidade dos seres humanos que precisam de uma divindade que possam tocar e mexer, que esteja perto de nós, que tenha um nome, uma hierarquia, que nos faça mais fortes. Em consequência, a dita doutrina, acaba por ser um sincretismo religioso, no juntar de ideias culturais por meio de missões. Um punhado de homens em nome de Cristo agarra em seres humanos e submete-os a um sincretismo atroz, que racionalidade é esta? É isto que é a religião? Palavras, conceitos, para vender de uma forma económica.
A leitura Evangelhos e a forte acessibilidade da Bíblia[2] levou a que muitos homens verificassem que muito daquilo que era típico da Igreja contemporânea tinha fraco apoio nos Evangelhos. Para além disso, a rebuscada dialéctica do ensino, os seus argumentos pareciam totalmente divorciados da vida real. Mas não era só isso, o refinamento da actividade mercantil criou condições para um anticlericalismo largamente predominante que tomava o êxito material como um sinal de virtude.
A lei que regulamenta a economia está escrita, é um decreto. Para evangelizar, para aprender uma cultura, a Europa latina (de confissão cristã) não se poupou a esforços. A emergência no credo e no culto deu alguma atenção à diversidade cultural. Porém, o Concílio de Trento, esse duelo verbal, conseguiu ao fim de 18 anos[3], algumas das suas declarações dogmáticas sobre os Sacramentos, o Baptismo, à Confirmação e à Ordem. “ (…) o Concílio de Trento foi em grande parte [a] tarefa [de] levar a cabo as suas decisões em diversa regiões do mundo" (Mullett 1984: 17). Uma das grandes preocupações desta assembleia era colocar "o sacerdote num plano num plano elevado e fazia uma cuidadosa diferenciação entre sacerdote e leigo" (Mullett 1984: 26). Ou seja, levaram todos estes anos a decidirem se o baptismo e o matrimónio eram para todos. Isto fez com que seres humanos, os “conquistados” fossem infelizes.
Bárbaros, pagãos e selvagens foram categorias que veicularam o etnocentrismo que não deixara de legar ao futuro o interesse pelos "outros", sobretudo interesses económicos. Ou se, de bárbaro a pagão, o selvagem começa a ser visto de maneira diferente, embora sempre em «degraus» abaixo. Surgida a ideia de primitivo, as interrogações mantiveram-se, todas elas de carácter teórico. Qual é a natureza humana? O que faz a diferença humana?
Os Jesuítas, os obreiros da Contra-Reforma, eram uma Companhia com força militante. Categóricos na obediência ao papa[4] e tidos como uma força internacional da Igreja. O treino minucioso dos Jesuítas foi levado à prática. Como confessores de reis e príncipes, os Jesuítas exerceram uma influência invisível mas poderosa, e por vezes temida, sobre a política e a diplomacia. Foram missionários entusiásticos demonstrando vontade e capacidade. Cedo ocuparam o seu lugar no mundo académico. Compreenderam que as universidades constituíam um dos pontos-chave na batalha estratégica da ortodoxia. Desempenharam o papel de assegurar uma provisão de missionários fervorosos e bem preparados, que iriam obter conversões, bem como, instruir aqueles que já tinham a sua fé, no país para onde fossem viver.
Sendo os Jesuítas uma empresa que sabia muito de cultura, os não aculturados eram um perigo para a Igreja católica. Afinal qual a razão e o motivo de se darem ao trabalho de converterem os nativos? A razão parece-nos óbvia, os estados católicos, nomeadamente Portugal e Espanha estavam a organizar os seus impérios e a tirarem grandes dividendos, ou como Mullett lhe chama: "a teoria da «compensação». Esta teoria tem [muita] credibilidade, tanto mais que os comentadores católicos do século XVII disseram efectivamente que a fé católica estava a compensar as perdas de almas na Europa com os ganhos de ultramar" (Mullett 1982: 58).
As novas descobertas exprimem o desejo que percorre toda a Idade Média, a procura do Paraíso terrestre. A uma longa distância por terra e por mar do ocidental mundo católico latino, estas descobertas incitam ao fantástico, ao grotesco – visões exuberantes intensificaram-se. Estava em causa objectivos de índole económica, metais preciosos, especiarias – o «Eldorado». Para atingir os objectivos era preciso avançar, era urgente afastar obstáculos. Há força de tudo isto, surge a polémica: quem são? O que são?
A polémica sobre a origem dos índios ocupa todo o século XVI, se interesses opostos havia eles acabaram por se harmonizar, por um lado os fins económicos e políticos e por outro, os fins espirituais defendidos pelos teólogos. Ou os índios eram homens, e havia que os cristianizar, ou então eram considerados simples animais e como tal assim tratados. Se assim é, desaparece o grande argumento da colonização que era a propagação da fé. É no mínimo curioso o tempo que levaram para chegarem ao consenso de que os índios afinal deveriam ser considerados homens, entretanto, já tinham desaparecidos populações inteiras, matar era a forma mais simples de negar.
Jacques le Goff
De um modo geral, a tendência anti-religiosa do Renascimento, tinha uma crescente fé nas possibilidades humanas. E embora o pleno desenvolvimento de uma teologia sistemática seja característico do cristianismo de influência helenística, um encadeamento de particulares circunstâncias levou a dizer que: "Só o Ocidente conhece uma construção como direito canónico. (…) e paralelamente uma nova forma de capitalismo que até então nunca se tinha manifestado: a organização racional capitalista (…) Noutros lugares só encontramos elementos percursores deste fenómeno" (Weber 1996: 12-16).
Se a doutrina é escatológica, o objectivo é salvar a alma. Dividir o mundo é o mais comum na Europa ou em África. Portugal ainda hoje está dividido em freguesias, mas já não em paróquias. Até 1974, Portugal fazia em África, o que se fazia no século XVI, expandir a doutrina. Ou seja, o rito está a mudar. A economia está dentro de nós, já não há lugar para a escatologia (o que está além da terra). Hoje em dia a teoria religiosa é a economia. Caiu a parte ritual, caíram os sentimentos, o que ficou foi a economia. Consequentemente a doutrina se expandiu para expandir a racionalidade do conquistador, racionalidade esta que não é outra coisa que a procura do lucro, investir e ficar com os bens dos outros. Assim, a doutrina é parte da cultura, a religião é a nossa cultura, mas esta mesma religião é economia.
Interessa reflectir sobre os processos de aculturação que se viveram, resultantes das imposições ocidentais, tendo como reverso, das violências praticadas, compensações nunca antes vistas. Terminava agora este trabalho com esta citação: "Apesar de se poder dizer que (…) a expansão respeitou as formas parentais de organização de trabalho existentes antes, de facto, a subordinação ao arquétipo do grupo doméstico (…) constitui o elemento dominador através do qual a criação de plus valia foi executada nos povos conquistados como na Europa. A ideia vem, parece simples dizê-lo, da herança deste conjunto de autoridades, Deus, padre superior, com as quais o trabalho no Ocidente foi organizado" (Iturra: 1991: 25).
Bibliografia
Erasmo de Roterdão
Foi ontem. Hoje a religião deixou há muito tempo de ser a instância que assegura com os deuses a regulação das coisas e a ordem entre os homens.
Compreende-se que haja muito quem pense que, com Nietzsche, Deus morreu. Mas também não faltam avós que dizem à sua filha, falando da neta: «Não vais deixar que a tua filha se case sem passar pela Igreja». O céu dos homens continua durante muito tempo iluminado pela luz das estrelas mortas.
O catolicismo está longe de ser uma pura religião de salvação. O catolicismo é dotado de um aparelho de poder, poder este que se bate pelo seu próprio poder, mesmo que só tenha mudado de cara e de argumentos. Esquecemos muitas vezes com grande facilidade que a religião não é nem doutrina nem teologia, ou seja, é um discurso cuja coerência é incerta. Sabemos que a ordem, o poder, a lei, são valores chaves do pensamento jurídico e político. O respeito pela pessoa humana deve tanto aos juristas como aos teólogos.
A laicidade não proíbe as Igrejas de se interessarem pelos grandes problemas da sociedade. Com efeito, a Igreja cristã não se apresenta na Idade Média como uma pura instância espiritual. Feita religião do Império a partir de Constantino, e associada ao poder imperial, o seu poder aumentará ainda mais quando este mesmo Império fica enfraquecido e entra em declínio. A Igreja aproveitou-se desta situação para aumentar o seu poder e construir o seu próprio império. Foi aquilo a que Delumeau chamou a «derrapagem» da Igreja (1977: 50): "O cristianismo oficial derrapou a partir da época constantiniana". O recurso à Igreja como um poder alternativo num longo período de crise implica necessariamente uma igreja diferente.
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"O domínio da Igreja sobre a cultura só foi quase total durante a Alta Idade Média. A partir da revolução comercial e do desenvolvimento urbano tudo se passa de outro modo. Por mais fortes que continuem a ser os interesses religiosos, por mais poderoso que seja ainda o enquadramento eclesiástico, grupos sociais antigos ou novos descobrem outras preocupações, têm sede de outros conhecimentos práticos ou teóricos diferentes dos religiosos, criam instrumentos de saber e meios de expressão próprios. Neste nascimento e desenvolvimento duma cultura laica, o mercador desempenhou um papel capital" (Le Goff 1982: 77).
Nos alvores do século XVI, a contradição que a Igreja transportava consigo torna-se insustentável, a história de um papa como Gregório, o Grande, ou de um bispo como Martinho de Tours mostra bem que estava fora de causa que a Igreja se limitasse ao domínio da «espiritualidade».
O Papa como Vigário de Cristo, não hesitava em usar os seus poderes de excomunhão para promover as ambições da família ou consolidar o seu poderio territorial. Dito isto, a desconfiança da Igreja em relação ao comércio não impedira o desenvolvimento das trocas comerciais, "a Igreja promulgou (…) toda uma série de sanções. A princípio apenas espirituais (…) em seguida temporais” (Le Goff 1982: 60). Mas condenações da usura não foram levadas muito a sério pela Igreja, cedo não hesita em pedir dinheiro a juros, " (…) o juro pago pelo que pedia emprestado tanto era apresentado como dádiva voluntária, como podia tomar a forma duma multa paga na expiração do prazo de reembolso, fixado expressamente para uma data demasiado próxima (…)" (Le Goff 1982: 60).
Fosse o que fosse, aquilo que os teólogos pensassem acerca da usura e dos negócios era cada vez menos relevante para o que estava a acontecer na vida económica, "a noção de utilidade e de necessidade dos mercadores (…) veio a coroar a evolução da doutrina da Igreja e lhes valeu o direito definitivo à cidadania na sociedade cristã medieval" (Le Goff 1982: 62). Posto isto, o sentido de aventura ia conduzir facetas assombrosas da actividade humana. Foi devido aos mercadores que se pode travar e expandir a doutrina ocidental.
A unidade do cristianismo foi efectivamente quebrada. O grande século XVI introduziu uma nova era de política do poder, de grandes guerras combatidas com novas armas e financiadas pelas riquezas do comércio.
Registou-se por toda a parte um respeito, muitas vezes genuíno, de violentas paixões, de profundas emoções, em que se gladiavam os mentores da fé. Mas, apesar de tudo isso, registou-se também um desvio marcado por outra escala de valores, em direcção ao secularismo. As guerras religiosas com demasiada frequência encobriam desígnios puramente mercantis. Os Turcos que "(…) empreenderam a conquista da Grécia em 1422" (AAVV 1996: 66), e que vieram a fundar comunidades mercantis, fizeram os cristãos gregos dispersaram-se em direcção ao ocidente, em consequência das guerras e conquistas turcas ocorridas. "A função da autoridade desprendida da divindade(…) é a gestão da empresa produtiva da força de trabalho e de bens que circulam como mercadorias; de facto, a expansão cristã do Ocidente a partir do século XVI, subordinou o conjunto dos povos colonizados à teoria do oikos grego, que os europeus haviam integrado na sua incipiente teoria económica inscrita na teologia" (Iturra: 1991: 25).
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A religião é um aspecto universal da cultura, e de um modo geral, reforça e mantém valores culturais, estando muitos deles ligados à ética e à moral, pelo menos implicitamente. Sustenta e incute normas particulares de comportamento culturalmente aprovadas, exercendo, até certo ponto um poder coercitivo.Várias são as teorias sobre a origem do fenómeno religioso, elaboradas por antropólogos e outros cientistas, mas aquela que aqui nos interessa é a de Iturra (1991: 14), "A religião é uma teoria construída através do tempo que tenta, ou trata, de dar direcção às relações especiais. Esta construção é também feita pelo investimento da experiência num modelo central - a divindade - que sintetiza tudo aquilo que o homem precisa ter enquanto vive”. Que queiramos quer não, um dos objectivos da doutrina são os recursos, sem os quais é impossível viver. A resposta de Vasco da Gama, quando lhe perguntaram em Calecut o que pretendia - «ouro, cristãos e especiarias» - esconde metade da realidade. Nas suas motivações estava a curiosidade, o espanto que as novas paragens ofereciam, mas o interesse principal eram os recursos extra-europeus, que para além de serem numerosos revelavam-se variados e baratos.
A grande meta dos eruditos, é, sem dúvida, o controle e gestão dos bens e meios de produção. Assim sendo, há que ver o que interessa e o que não interessa ao povo saber. Isto é, se o mundo foi criado por Deus, tudo o que existe tem uma finalidade, nada foi criado ao acaso, assim, existe uma série de tabus a circundar os recursos, os quais têm que ser respeitados. Esta forma ideológica de controle das pessoas, é sem dúvida fantástica, e os eruditos, encostados aos dogmas, vão assim, controlando e tirando proveito dos «seus recursos». O homem deve então aceitar a doutrina que o ensina. Como diz Iturra (1991: 26): "A subordinação à paternidade divina é a garantia da continuidade do saber". Ou seja, a doutrina estabelece condutas, onde são criadas interdições e prescrições, em que o homem para se sentir bem, tem que praticar e obedecer a essas mesmas condutas. Caso desobedeça, corre o risco de cometer o pecado[1] e de desagradar a Deus ficando entregue a si próprio, i.e., fica fora da ordem social, perde a protecção.
O homem é então uma construção social, porque a doutrina concebe a ordem social, e dita as regras, se ele não cumpre a sua identidade é considerada desviante, ou seja, o indivíduo fica submerso na sociedade, esta por sua vez anula a sua individualidade através das suas leis. "Do que se trata, em síntese, é da sistematização de uma prática de subordinação do individual ao social sobre o qual se tem construído todo um poder. O poder provém da força da factualidade de construção do social" (Iturra 1989: 62).
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O desenvolvimento do valor de troca, da produção para o mercado e das forças produtivas em geral, levou necessariamente ao apelo aos homens para a vida terrena. Estava montado o cenário, para economia de mercado. Depois da queda de Roma, nenhum império conseguiu sobreviver dentro dos limites europeus.As mobilidades sociais, a erosão económica, a ascensão material e social dos grupos mercantis não poderia deixar de criar tensões. Neste contexto a Igreja tornara-se um dos mecanismos fundamentais de preservação do poder nobiliárquico, não só pelo seu aspecto dito mais visível, na produção ideológica e na repressão dos que questionavam o seu monopólio, como, e principalmente, por constituir a instituição depositária dos excedentes nobiliárquicos que resultavam da instituição do morgadio. A nobreza, ao empurrar os filhos segundos para os conventos, matava dois coelhos com uma só cajadada: por um lado reforçava o seu poder na terra, por outro, garantia no céu a salvação eterna.
Como diz Weber (1996: 32), "toda essa contradição entre alheamento do mundo, ascese e devoção religiosa, por um lado, e participação na actividade capitalista, por outro, se poderá afinal transformar numa íntima relação de afinidade". O móbil e o peso da rede de manutenção eclesiástica sublinha a valoração do económico que se conexionam numa ética marcada pelo apreço do trabalho, ou daquilo que constitui o tipo de problemática apontado com Max Weber sobre o «espírito do capitalismo». Ou seja, o aparecimento dos sinais de mentalidade em que há uma propensão á valoração económica e a sua subsequente incorporação na escala de valores.
A religião e a economia têm uma conexão mútua e inseparável. “ (...) o pensamento económico tem usado ideias religiosas para mobilizar o processo de vida; no interior do grupo que trabalha trabalham ideias recolhidas pelo grupo, que dele se reproduzem e que lhe entregam saber e meios. O que permite retomar a definição de Firth (1959), (…) a religião é a preocupação do homem com o social e os seus objectivos (…) uma forma que a Igreja usa para afirmar o seu poder” (Iturra, 1991: 20-21). O declínio da consciência humana imediata do Céu e do Inferno, a diminuição do sentimento da responsabilidade do homem pelos pecados do mundo, tiveram o seu corolário no aumento do conforto material, na sensualidade declarada, nas representações seculares da arte, na música, na literatura, em suma, na convicção de que o homem podia realizar aquilo que quisesse neste mundo, sem o «fantasma» do divino.
O trabalho faz parte da vida do homem. É em função do trabalho que ele organiza e faz projectos para a sua vida e a produção que retira desse trabalho regulamenta, o casamento, o número de filhos, a herança e as relações sociais.
Existe sempre um processo racional da organização de estratégias para a produção que varia consoante os contextos históricos. A racionalização trás consigo, no entanto, um dado invariável que é o facto de todas as relações sociais, inclusive as de parentesco, serem determinadas pela classificação do trabalho. Não quer isto dizer que os sentimentos não existam, o que acontece é que as emoções são exploradas como estratégias para a produção e conduzidas para este fim. E aquilo que nos parece ser algo de natural é o produto de um cálculo racional. "Se o trabalho é a colaboração entre os homens, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxonomia e uma garantia? (…) A garantia de tudo isto está na criação de transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá na terra (…) A história recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo uma concepção de trabalho que se entende primeiro e se faz depois - alma e corpo - mostra as consequências da transgressão" (Iturra: 1991: 77-78).
Se relacionarmos tudo isto como o desenvolvimento económico, estivemos em presença de um espantoso alargamento dos horizontes do homem, do domínio económico originado com o descobrimento de novos continentes.
Porque será que o Ocidente precisa de espalhar a sua doutrina? A teoria da religião tem princípios económicos. É evidente que a doutrina tem que ser espalhada. A racionalidade, o que será a racionalidade? Encontramos mil definições. Mas há uma definição que é bem mais natural para nós. É uma ideia oriunda dos palestinianos e dos gregos que o ser humano tem uma razão natural.
Segundo a doutrina da Igreja, pela razão natural o homem pode conhecer a Deus pelas suas obras. Faz dois mil anos que esta ideia nos governa. Passa-se de uma metáfora ao facto. Mysterium tremendum. No entanto o " mistério das relações entre igualdade e desigualdade (…) tinha fundamentos religiosos. A desigualdade pode ser justificada à luz das Escrituras. O Espírito «sopra onde quer». A noção social de Aliança implica a distinção de um escol de puros e, consequentemente, desigualdade. (…) A bem dizer, podem encontrar-se na Bíblia tantas justificações para a igualdade como para a desigualdade. (…) A igualdade natural entre os homens, perfilhada pelo cristianismo, não contradiz a estrutura hierárquica das «ordens» na sociedade. Mas o Direito Natural assenta no postulado de que existe uma lei universal, válida para todos os homens e com fundamento na própria natureza do homem. (…) Os homens são considerados com a capacidade de poder descobrir a lei natural exclusivamente pelas luzes da razão" (AAVV 1996: 515).
A racionalidade é-nos natural desde que nós a reconheçamos como uma divindade. No entanto, essa racionalidade não existe só por nossa causa. Porém, a doutrina é uma metáfora, porque diz que a razão existe, uma vez que diz que nos reconhecemos a obra de Deus. Ora, nós bebemos porque temos água e frequentemente dizemos: «graças a Deus à água», ou seja, é uma constante metáfora da nossa racionalidade - não pode ser interpretado por ninguém uma revelação divina, portanto estamos a falar de racionalidade. Desejar a razão é um sentimento escrito no coração e na mente do homem. Pela razão natural, reconhece-se que o ser humano tem razão.
É natural que nós no quotidiano usemos o conceito, tal como a doutrina diz que se procura a felicidade, as pessoas também procuram o lucro, ou seja, têm que produzir para a sua felicidade. Será que foi isto que viram os portugueses que foram para a Índia?
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O ser humano não cessa de interagir com os outros humanos, em consequência a racionalidade é uma forma de gerir as pessoas e as coisas. Porém, as culturas não reagem de forma uníssona, i.e. as suas necessidades, os seus conhecimentos, a sua religião não actuam da mesma forma e na mesma direcção em todo o lado. Cada cultura cria os seus próprios ditames.Chegados a outras paragens, aos europeus, era necessário espalhar a doutrina, porque só assim se podiam fazer entender, imbuindo a outros povos os seus conceitos e promover os seus intentos.
Será que portugueses ao chegaram à Índia não reconheceram as suas formas racionais naturais? A objectividade racional, a utilidade procurada assenta num quadro em que a persuasão, a coerção, a imposição da dita fé católica no mundo não europeu revelou um grande número de convertidos ao catolicismo. E porquê? Pelo que atrás já foi dito não temos dificuldade de vislumbrar as causas. O missionário dominicano Bartolomeu de Las Casas na sua Brevíssima Relação da Doutrinação dos Índios, dá-nos conta de como os Espanhóis perpetraram na América do Sul vis atrocidades aos nativos. Estes viviam ainda no Neolítico, as suas armas compunham-se de lanças, fisgas e fundas. Os espanhóis chegaram lá e atacaram-nos com "raios por todo o lado".
O monoteísmo ocidental seguro da excelência da revelação que os fundamenta, exibem altivamente a sua superioridade, pudera! Para além da exegese dos ritos, traziam canhões espingardas, um poder bélico altamente destruidor. Os canhões, as espingardas, causaram estragos que eles nunca tinham visto, entenderam que Deus estava zangado com eles e fugiram. O mesmo é dizer que se tratava de um poder com o qual era preciso estabelecer as melhores relações. O conquistador, as suas formas, de pensar são muito diferentes. Temos aqui duas formas de entender a realidade. O efeito é devastador.
"À parte da violência directa, houve desastradas tentativas de conversão por atacado por parte dos pioneiros espanhóis na América do Sul, os «conquistadores». (…) estes soldados-exploradores baptizavam frequentemente tribos inteiras em massa (…) quando foi estabelecido na América do Sul o sistema de cativeiro chamado encomienda, como forma de escravidão estatal, os nativos foram forçados a aceitar o catolicismo. (…) quer isto dizer que os métodos espanhóis, na maior parte das vezes, aniquilavam mais do que convertiam os povos nativos (…) associando a nova religião á conquista, à servidão, à exploração e à desumanidade" (Mullett 1984: 60).
Os contactos, ora violentos, ora pacíficos, que a Península Ibérica perpetuou, tanto nos povos americanos, como nos africanos e asiáticos, não nos podemos esquecer que apesar de violentos e destruidores os confrontos na América espanhola, nunca deram lugar à supressão total das etnias e civilizações anteriores, como aconteceu nas regiões colonizadas, dominadas pelo imperialismo europeu do período de expansão económica, conduzida sobretudo por países de Europa do Norte.
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Dámo-nos conta de uma Igreja cheia de excessos, de abusos, de ignorâncias, de violência em que a importância da devoção cristocêntrica se agarra com uma sinceridade apaixonada ao problema da sua própria salvação. Encontramos nos pregadores do Evangelho, prodígios e desastres, tentativas vacilantes de explicar e prever por meio de jogos de palavras o medo, num mudo instável onde o sino toca todos os dias e a morte dá o mais quotidiano dos espectáculos.De que vivem as Igrejas? Onde vão elas buscar as suas finanças? O caso das indulgências não passa de um indicador. Temos uma Igreja de que não é fácil dizer se tenta dar remédio para a angústia dos homens, ou se a cultiva pelos lucros que essa angústia dá, eu diria faz as duas. A Igreja vive do trabalho alheio.
Deslizando através do ritual, da evocação do poder-outro, do poder divino, em nome do amor, da justiça ou da liberdade, procura não ser derrubada através de construções, contradizendo-se " (…) muitas vezes (sic et non sim e não), e que, como [já] dizia Alain de Lille no final do séc. XII, "as autoridades têm um nariz de cera" - maleável ao gosto dos exegetas e dos utentes" (Le Goff 1987: 22).
É assim que se espalha a doutrina. A expansão da doutrina é substituir a racionalidade natural pelo etnocentrismo racional europeu, que acredita na divindade, na morte e na ressurreição. Essa necessidade dos seres humanos que precisam de uma divindade que possam tocar e mexer, que esteja perto de nós, que tenha um nome, uma hierarquia, que nos faça mais fortes. Em consequência, a dita doutrina, acaba por ser um sincretismo religioso, no juntar de ideias culturais por meio de missões. Um punhado de homens em nome de Cristo agarra em seres humanos e submete-os a um sincretismo atroz, que racionalidade é esta? É isto que é a religião? Palavras, conceitos, para vender de uma forma económica.
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"Homens que professam a caridade apostólica, dão gritos de tragédia por causa da maneira de cingir um hábito (…) Há os que têm horror ao contacto como o dinheiro, mas já não como o vinho nem com as mulheres. Todos têm em mira singularizar o seu modo de vida. Não procuram a semelhança com Cristo, mas diferença entre eles. A maior parte da felicidade deles está no cognome: uns gostam de se denominar Franciscanos, (…) Há os beneditinos e os bernardinos; há os bridgenses e os augustinenses; há as guitelmitas e os jacobinos; tudo isso como se fosse pouco dizerem-se cristãos" (Erasmo 1982: 102). Este relato pode ser encarado como uma amostra da situação da Igreja na Europa, a apatia e a indiferença grassava - o orçamento pontifício organizava-se cada vez mais como o dos príncipes temporais, interessados essencialmente na actividade secular. A religião tornava-se mais mecânica e materialista o que interessava era que os seus fiéis colocam-se o dinheiro na caixa das esmolas. O humanismo rejeitava cada vez mais as virtudes monásticas e fomentava atitudes seculares.A leitura Evangelhos e a forte acessibilidade da Bíblia[2] levou a que muitos homens verificassem que muito daquilo que era típico da Igreja contemporânea tinha fraco apoio nos Evangelhos. Para além disso, a rebuscada dialéctica do ensino, os seus argumentos pareciam totalmente divorciados da vida real. Mas não era só isso, o refinamento da actividade mercantil criou condições para um anticlericalismo largamente predominante que tomava o êxito material como um sinal de virtude.
A lei que regulamenta a economia está escrita, é um decreto. Para evangelizar, para aprender uma cultura, a Europa latina (de confissão cristã) não se poupou a esforços. A emergência no credo e no culto deu alguma atenção à diversidade cultural. Porém, o Concílio de Trento, esse duelo verbal, conseguiu ao fim de 18 anos[3], algumas das suas declarações dogmáticas sobre os Sacramentos, o Baptismo, à Confirmação e à Ordem. “ (…) o Concílio de Trento foi em grande parte [a] tarefa [de] levar a cabo as suas decisões em diversa regiões do mundo" (Mullett 1984: 17). Uma das grandes preocupações desta assembleia era colocar "o sacerdote num plano num plano elevado e fazia uma cuidadosa diferenciação entre sacerdote e leigo" (Mullett 1984: 26). Ou seja, levaram todos estes anos a decidirem se o baptismo e o matrimónio eram para todos. Isto fez com que seres humanos, os “conquistados” fossem infelizes.
Bárbaros, pagãos e selvagens foram categorias que veicularam o etnocentrismo que não deixara de legar ao futuro o interesse pelos "outros", sobretudo interesses económicos. Ou se, de bárbaro a pagão, o selvagem começa a ser visto de maneira diferente, embora sempre em «degraus» abaixo. Surgida a ideia de primitivo, as interrogações mantiveram-se, todas elas de carácter teórico. Qual é a natureza humana? O que faz a diferença humana?
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"No campo do Direito, não é possível falar, nas restantes partes do mundo para além do Ocidente, de uma ciência jurídica de carácter racional (…) é só no Ocidente que se encontra um produto do género do Direito Canónico" (Weber 1995: 664). Novos saberes vão marcando presença, coexistindo uma grande confluência de estudos, nomeadamente os estudos jurídicos (análise de registos do que é normativo das sociedades) foram alvo de interesse dos Jesuítas, com foram alvo do seu interesse, o estudo dos costumes, sem esquecer os estudos linguísticos tão necessários à evangelização.
Os Jesuítas, os obreiros da Contra-Reforma, eram uma Companhia com força militante. Categóricos na obediência ao papa[4] e tidos como uma força internacional da Igreja. O treino minucioso dos Jesuítas foi levado à prática. Como confessores de reis e príncipes, os Jesuítas exerceram uma influência invisível mas poderosa, e por vezes temida, sobre a política e a diplomacia. Foram missionários entusiásticos demonstrando vontade e capacidade. Cedo ocuparam o seu lugar no mundo académico. Compreenderam que as universidades constituíam um dos pontos-chave na batalha estratégica da ortodoxia. Desempenharam o papel de assegurar uma provisão de missionários fervorosos e bem preparados, que iriam obter conversões, bem como, instruir aqueles que já tinham a sua fé, no país para onde fossem viver.
Sendo os Jesuítas uma empresa que sabia muito de cultura, os não aculturados eram um perigo para a Igreja católica. Afinal qual a razão e o motivo de se darem ao trabalho de converterem os nativos? A razão parece-nos óbvia, os estados católicos, nomeadamente Portugal e Espanha estavam a organizar os seus impérios e a tirarem grandes dividendos, ou como Mullett lhe chama: "a teoria da «compensação». Esta teoria tem [muita] credibilidade, tanto mais que os comentadores católicos do século XVII disseram efectivamente que a fé católica estava a compensar as perdas de almas na Europa com os ganhos de ultramar" (Mullett 1982: 58).
As novas descobertas exprimem o desejo que percorre toda a Idade Média, a procura do Paraíso terrestre. A uma longa distância por terra e por mar do ocidental mundo católico latino, estas descobertas incitam ao fantástico, ao grotesco – visões exuberantes intensificaram-se. Estava em causa objectivos de índole económica, metais preciosos, especiarias – o «Eldorado». Para atingir os objectivos era preciso avançar, era urgente afastar obstáculos. Há força de tudo isto, surge a polémica: quem são? O que são?
A polémica sobre a origem dos índios ocupa todo o século XVI, se interesses opostos havia eles acabaram por se harmonizar, por um lado os fins económicos e políticos e por outro, os fins espirituais defendidos pelos teólogos. Ou os índios eram homens, e havia que os cristianizar, ou então eram considerados simples animais e como tal assim tratados. Se assim é, desaparece o grande argumento da colonização que era a propagação da fé. É no mínimo curioso o tempo que levaram para chegarem ao consenso de que os índios afinal deveriam ser considerados homens, entretanto, já tinham desaparecidos populações inteiras, matar era a forma mais simples de negar.
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"A cristalização do conceito de economia foi uma questão de tempo e de história"
De um modo geral, a tendência anti-religiosa do Renascimento, tinha uma crescente fé nas possibilidades humanas. E embora o pleno desenvolvimento de uma teologia sistemática seja característico do cristianismo de influência helenística, um encadeamento de particulares circunstâncias levou a dizer que: "Só o Ocidente conhece uma construção como direito canónico. (…) e paralelamente uma nova forma de capitalismo que até então nunca se tinha manifestado: a organização racional capitalista (…) Noutros lugares só encontramos elementos percursores deste fenómeno" (Weber 1996: 12-16).
Se a doutrina é escatológica, o objectivo é salvar a alma. Dividir o mundo é o mais comum na Europa ou em África. Portugal ainda hoje está dividido em freguesias, mas já não em paróquias. Até 1974, Portugal fazia em África, o que se fazia no século XVI, expandir a doutrina. Ou seja, o rito está a mudar. A economia está dentro de nós, já não há lugar para a escatologia (o que está além da terra). Hoje em dia a teoria religiosa é a economia. Caiu a parte ritual, caíram os sentimentos, o que ficou foi a economia. Consequentemente a doutrina se expandiu para expandir a racionalidade do conquistador, racionalidade esta que não é outra coisa que a procura do lucro, investir e ficar com os bens dos outros. Assim, a doutrina é parte da cultura, a religião é a nossa cultura, mas esta mesma religião é economia.
Interessa reflectir sobre os processos de aculturação que se viveram, resultantes das imposições ocidentais, tendo como reverso, das violências praticadas, compensações nunca antes vistas. Terminava agora este trabalho com esta citação: "Apesar de se poder dizer que (…) a expansão respeitou as formas parentais de organização de trabalho existentes antes, de facto, a subordinação ao arquétipo do grupo doméstico (…) constitui o elemento dominador através do qual a criação de plus valia foi executada nos povos conquistados como na Europa. A ideia vem, parece simples dizê-lo, da herança deste conjunto de autoridades, Deus, padre superior, com as quais o trabalho no Ocidente foi organizado" (Iturra: 1991: 25).
Bibliografia
AAVV, 1996 [1980], História Geral da Europa II: A Europa desde o início do século XVI ao final do século XVIII, Europa-América, Mem Martins.
CRUZ, M. Braga da, 1995, Teorias Sociológicas - Os Fundadores e os Clássicos, I Vol., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 581-737.
DUBY, George, 1994 [1962], Guilherme, o Marechal, Lisboa, Gradiva.
DELEMEAU, Jean, 1977, Le christianisme va-t-il- mourir?, Hachette, Paris.
-----------------,1983, Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident (XIII-XVIII siècle), Fayard, Paris.
ERASMO, De Roterdão, 1982 [1511], Elogio da Loucura, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa.
GREEN, V. H. H., 1991 [1964], Renascimento e Reforma, Publicações Dom Quixote, Lisboa.
ITURRA, R., 1989, “O Pecado como garantia da reprodução social”, in Portugal e a Europa: identidade e diversidade, Asa, Porto, pp. 53-63.
-----------, 1991, A religião como teoria da reprodução social, Escher, Lisboa.
MULLETT, Michael, 1984, A Contra-Reforma, Gradiva, Lisboa.
LE GOFF, Jacques, 1982, Mercadores e Banqueiros da Idade Média, Gradiva, Lisboa.
------------, 1987 [1986], A bolsa e a vida. Economia e religião na Idade Média, Teorema, Lisboa.
WEBER, Max, 1986 [1904-5], A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Presença, Lisboa.
[1] "A prática do pecado é então apresentada, e naturalmente vista pelo homem, como uma ameaça à liberdade e á protecção divina. Desta forma, o pecado surge como garantia da reprodução da ordem social" (Iturra 1989: 58).
[2] A crescente acessibilidade da Bíblia tem origem na invenção da imprensa.
[3] Em Trento foram efectuadas "(…) três reuniões em 1545-49, 1551-52 e 1562-63 [a chamada "revolução tridentista"], a Igreja se debateu com os problemas que a tinham dividido e ameaçado aniquilá-la, as suas relações com o Protestantismo e a necessidade de por a sua própria casa em ordem e de definir com maior precisão a sua fé" ( Grenn 1991: 209).
[4] Foi o papa Paulo III que concedeu a aprovação à fundação da Companhia de Jesus, cujo fundador foi Inácio de Loiola de origem basca. Não eram monges, nem padres seculares; estavam dispensados de cantar no coro as horas litúrgicas e de usarem um hábito monacal distinto.
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